Epílogo
Tempo estimado de leitura: 31 minutos
Solto o ar pela boca e ele sai em forma de fumaça quando os meus pés tocam o chão coberto de neve.
– Não vou demorar. – Saio da sege e aviso o boleeiro que a conduzia, guiado por um bonito cavalo negro.
Aperto bem ao redor do meu corpo o longo casaco de manto preto com capuz, antes de começar a caminhar até à entrada deslumbrante da grande igreja feita de tijolos espelhados e coloridos. As grandes portas de ferro estavam abertas, então não tive problemas ao entrar, fazendo os saltos das minhas sandálias ecoarem pelo interior santo e refinado do lugar.
– Gloria Patri, et Filio, et Spiritui Sancto. Sicut erat in principio, et nunc, et semper, et in saecula saeculorum. Amen. – Sussurro quando começo a andar entre os inúmeros bancos de madeira da igreja, separados por fileiras.
Todos dentro da grande igreja não pareciam notar a minha presença, mais preocupados em suas rezas e fé, e eles estavam certos.
Os belos vitrais com imagens de santos, estavam espalhados por quase todas as paredes, deixando a luz fraca da noite gelada, atravessar e brincar com os bancos, dando-lhes várias cores novas.
Paro diante o belíssimo altar que carregava a imagem do nosso Senhor, e perante a ele, me ajoelho nos pequenos degraus, enquanto fecho os olhos e junto minhas mãos, agradecendo por mais um dia de vida.
O meu corpo se aquece quando sinto uma presença se aproximar, e então sei que alguém se ajoelhou do meu lado.
– O que você pediu? – A voz doce e melodiosa que logo reconheço, sopra ao meu ouvido.
Sorrio antes mesmo de abrir os olhos e encontrar minha irmã.
– O mesmo de sempre.
Wendy sorri em resposta, balançado os cabelos curtos na altura do queixo.
– Venha comigo. Vamos conversar em outro lugar. – Ela se levanta, segurando em uma das minhas mãos, antes de me levar para o lado direito da igreja, onde um grande confessionário enfeitava o lugar.
Quando nos afastamos o suficiente para não atrapalharmos quem rezava, Wendy se encosta na parede próxima e cruza os braços, enquanto me encara animada.
– E então, como foi sua viagem? – Ela pergunta.
– Cansativa. – Confesso em um suspiro. – Visitar tantas igrejas em apenas uma semana é bem mais cansativo do que parece.
– Imagino. – Ela assente. – Você visitou todas?
– Não. – Nego com a cabeça. – Mas felizmente a maioria.
– Presumo que eu terei que visitar as que restaram. – Ela me encara com falso desanimo, me fazendo rir.
– Com toda certeza. Eu não quero fazer isso até o próximo mês. Sinto falta da minha casa. – Suspiro pela segunda vez.
– Antes de te deixar ir, me conte tudo.
Minha expressão fica um pouco mais séria, à medida que me sinto cansada, não só fisicamente, mas dessa situação.
– O Vaticano continua nos caçando. Às vezes, ele parece implacável.
– Me sinto como se tivesse sido eu a entregar a maçã para Eva. – Wendy debocha, antes de revirar os olhos. – Isso nos faz importantes.
– Não de um jeito bom. – Rio nasalada, e ela me acompanha.
Por todos esses anos tivemos que lidar com o Vaticano nos perseguindo como ratos pecadores, mas eles nunca fazem isso bem. Todas as igrejas que abrimos e espalhamos por vários lugares, eram os espiões perfeitos para que vigiássemos os passos daqueles que nos caçam.
– E as coisas por aqui, como estão? Sally saiu? – Pergunto.
– Estão bem, essa sede está lotada de caçadores, temos realmente uma turma grande para ensinar. – Os olhos de Wendy brilham.
Nós estávamos na frente da sede principal de todas as igrejas Sanguis. E eu via Wendy como um Padre que, ao invés de ensinar apenas sobre a palavra do Senhor, também ensinava como exorcizar e matar uma criatura. Essa era a principal função de todas as nossas igrejas. Não éramos mais apenas quatro, agora éramos milhares, todos espalhados pelo mundo, unidos por uma única causa, seguindo ao Senhor e não ao Vaticano, do qual renunciamos mesmo depois de sermos expulsas. Jamais, em hipótese alguma, seríamos pegas de surpresa outra vez, pois agora tínhamos quem lutar do nosso lado.
– Sally está lá embaixo dando sua aula de ervas. – Wendy afina a voz e balança a cabeça e as mãos, fazendo graça como se fosse uma mágica.
Rio, e depois encaro o confessionário perto de nós.
– Você quer ir vê-la? Eu posso chamá-la por um instante, tenho certeza que não atrapalhará a aula. – Wendy aponta para o confessionário que guardava uma passagem secreta.
– Não, tudo bem. Eu a vejo em outra ocasião. Eu realmente quero ir pra casa agora, já está ficando tarde. Só passei para avisar que voltei que você precisa visitar o restante das igrejas.
Wendy faz uma careta e eu a encaro com falsa seriedade.
Não importa quanto tempo passe, ela nunca deixava de ser dessa maneira divertidamente irresponsável. Me pergunto como Sally ainda consegue morar com ela. Bem, eu aguentei Wendy por vinte e dois anos, mas isso não conta, pois ela é minha irmã e eu já nasci pronta para amá-la incondicionalmente, apesar de suas bagunças e estripulias.
– Agora me vou. Qualquer coisa me liga. Por enquanto as coisas então calmas e o Vaticano já não tenta nada faz quase um ano. – Me despeço de Wendy com um longo e apertado abraço.
– É isso que me assusta. Um lobo em pele de cordeiro. Eles estão aprontando, Eleninha.
– Que aprontem. Nós estaremos esperando de braços abertos, enquanto seguramos armas e facas. – Digo e Wendy ri mais alto do que deveria, fazendo sua risada ecoar pelos cantos da igreja.
Ela logo encolhe os ombros ao perceber o que fez, mas quem iria repreendê-la por isso? Essa igreja era dela.
Com mais alguns risos e abraços, me despeço verdadeiramente da minha irmã e saio da igreja, voltando para dentro da sege, vendo o cavalo um pouco impaciente. Quando me escuta fechar a porta da pequena cabine sem janelas, o boleeiro chacoalha as rédeas, fazendo o cavalo começar a andar, nos levando para longe da igreja.
***
O caminho para casa pareceu mais longo do que eu gostaria, mas quando escuto o cavalo relinchar baixo e a sege parar em um tranco leve, suspiro aliviada. Com as mãos ansiosas, pego o pequeno buquê de taraxacum officinale que comprei mais cedo e deixei sobre o banco acolchoado da sege, e abro a porta da cabine pintada de preto, descendo com cuidado enquanto afundo minhas sandálias na neve clara e macia.
Com um breve e educação curvar de cabeça, agradeço ao boleeiro, que mais uma vez chacoalha suas rédeas e vai embora com seu cavalo. As grandes rodas de madeira da sege deixaram grandes marcas na neve, como se fosse um caminho a seguir.
Alguns corvos passam voando por perto enquanto corvejam, preenchendo a noite gelada com suas vozes. Eles voam em direção ao denso bosque de árvores altas e bonitas.
Quando os dedos dos meus pés começam a congelar, sei que preciso me mexer, então empurro o grande portal cinza, fazendo alguma neve cair dele. Após deixá-lo como estava antes, começo a caminhar pelo alinhado caminho de pedras cobertas por neve. Na primavera ele sempre ficava tão bonito, enfileirado com suas pequenas pedras que acompanhavam as pétalas de flores trazidas do bosque, mas em invernos como esse, só se podia enxergar o branco.
Após atravessar todo o caminho de pedras, contorno o jardim com pequenas fontes de anjos. A água saia congelada da boca das estátuas, como se fosse um fino escorregador, e isso as tornavam um pouco engraçadas, por isso, preciso conter um riso.
Respiro fundo e alto, enquanto corro para a entrada da enorme casa pintada em tons claros com detalhes belíssimos de ferro brilhando nas bordas da porta e das janelas. As luzes estavam acessas, então alguém ainda estava acordado.
Quando paro em frente à porta de entrada, pego a chave no bolso de meu casado de manto preto com capuz e, sem pressa, destranco a porta, passando rapidamente para dentro da casa iluminada, sendo recebida pelo calor.
Respiro profundamente, puxando todo o ar para dentro de mim, enquanto sinto o costumeiro cheiro doce de ervas e flores.
Caminho um pouco pelo hall coberto de retratos nas paredes, e coloco o buquê sobra a redonda mesinha de vidro. Em seguida, retiro o meu casaco, pois já não sinto mais frio aqui dentro, decerto, a lareira estava ligada, aquecendo todos os cômodos; o coloco sobre a mesinha também.
Passo as mãos sobre o bonito vestido claro que eu usava hoje, ao mesmo tempo que escuto passos apressados correndo sobre o assoalho de madeira.
Um sorriso involuntário surge em meus lábios e, em questão se segundos, vejo aquela pequena figura correndo em minha direção, em seu pijama branco de seda com estampa de ursinhos.
– Mamãe!
Me agacho e meu vestido se espelha pelo chão quando abro os meus braços, pronta para recebê-lo com todo o amor. Evan sorri largo, piscando seus grandes olhos castanhos, enquanto seu cabelo balançava ao acompanhar o ritmo de seus passinhos agitados cobertos por meias azuis felpudas.
Ele se joga nos meus braços, passando seus bracinhos ao redor do meu pescoço enquanto me aperta o mais forte que pode.
Escuto mais passos, mas esses são calmos. Logo a imagem de Lucille, a babá, surge no final do hall, quando ela trazia sua acompanhante. Sorrio para a pequena garotinha de longos cabelos claros - iguais aos de Evan, que segurava a barra da saia da babá, enquanto tentava manter seu pequeno ursinho consigo.
Emily, vestida em um pijama idêntico ao de Evan, me encara por alguns segundos, antes de tomar coragem para correr em minha direção e se juntar ao abraço apertado do irmão.
Fecho os olhos, os abraçando com todo amor que tenho, finalmente me sentindo em casa.
– Por que os meus dois amores ainda estão acordados? Já está tarde. – Pergunto, com um tom de voz amoroso e calmo.
– A Lucilli falou que você vinha hoje, mamãe. Aí eu fiquei acordado porque tava com muita saudade. – Evan explica com os olhos bem abertos, como se me contasse a coisa mais importante do mundo.
Rio de sua expressão exagerada, sentindo meu coração se aquecer.
– Eu também estava com saudades, meu amor. – Beijo o topo de sua cabeça, entre os fios quase brancos que pairavam sobre os seus longos cílios.
Emily me aperta com seus braços, não querendo me soltar, e quando a olho, ela me encara atentamente, enquanto seu ursinho escorregava debaixo do braço e ela tentava mantê-lo.
– Certo, já que estamos todos acordados, que tal um chá bem quentinho? – Pergunto, vendo a expressão de Evan se tornar surpresa e animada. – Então me esperem na cozinha. Me junto a vocês em um minuto. – Digo, e os solto.
Emily segura na mão de Evan, e ele sorri para a irmã, antes de sair animado com ela pelo corredor.
Lucille se aproxima, rindo contida.
– Muito obrigada por tomar conta delas por essa semana. – Sorrio para a mulher de cabelos presos em um elegante rabo de cavalo. – Você está dispensada agora.
– Não há de quê. – Ela sorri gentilmente.
– Eles não deram trabalho, deram?
– Eles nunca dão. – Ela fala de forma genuína, enquanto pega o seu casaco e bolsa pendurados no cabideiro.
A agradeço mais uma vez e ela vai embora, sumindo por entre a neve fria do lado de fora.
Expiro forte e animada, e pego o buquê e o casaco sobre a mesinha.
– Esperem mais um minutinho. – Aviso alto, antes subir até o andar cima para guardar o que trouxe.
Sem delongas, volto para o primeiro andar e vou em direção à cozinha, encontrando os meus preciosos gêmeos sentados em cadeiras, um do lado do outro. Evan balançava seus pezinhos debaixo da mesa, e Emily apertava suas mãos apoiadas sobre a barriga do ursinho deitado na mesa. Eles eram tão pequeninhos que quase não conseguiam enxergar a parte de cima da mesa, mas eu tinha a visão mais adorável do mundo ao vê-los encolhidinhos nas cadeiras que pareciam gigantes agora.
Como se rodopiasse pela cozinha, balançando o meu vestido para lá e para cá, procuro a chaleira, da qual encho com água e coloco para ferver no fogão. Em seguida, vou atrás de algumas ervas cheirosas, um pouco de açúcar e um dos meus frascos especiais, que continham um líquido vermelho.
Assim que pego algumas xícaras, escuto risos atrás de mim e a chaleira apita, indicando que a água já havia fervido. Então, com cuidado, encho as xícaras, misturando as ervas e o açúcar a água quente e, por fim, finalizo despejando algumas gotinhas do líquido vermelho em apenas duas das xícaras.
– Pronto. – Anuncio, levando duas xícaras até a mesa. Evan bate palminhas e Emily observa tudo com curiosidade, às vezes espiando o ânimo do irmão. – Tomem cuidado porque está quente, huh?! – Empurro as xícaras em suas direções e eles assentem.
Volto para perto do bonito balcão lustroso de pedra preta, e pego a minha xícara antes de me juntar aos meus filhos, me sentando do outro lado da mesa, de frente para ambos.
Evan fica de pé sobre sua cadeira, e começa a assoprar o chá dentro da xícara, como eu já havia o ensinado. Emily observa de novo o irmão, antes de imitá-lo.
– Então, me contem tudo que vocês fizeram essa semana. – Apoio um braço na mesa e o rosto na mão fechada, enquanto encaro cada detalhezinho dos meus bebês.
– Mamãe, eu fiz um montão de desenho pra você.
– É mesmo? – Pergunto animada e Evan assente, satisfeito com a minha reação. – Vou querer ver cada um deles depois. – Seus olhos brilham por minhas palavras, e mais uma vez o meu coração se aquece.
– A gente brincou muito com a Lucilli, mamãe. Eu era um caçador, igual você. – Evan gesticula erguendo seus bracinhos. – A Lily era sempre o Drárura, todas as vezes, mamãe. Mas eu não deixei ela me morder, não. – Ele arregala os grandes olhos castanhos.
– É Drácula, meu amor. – Rio enquanto o corrijo, e ele acena positivamente com a cabeça. – Tudo que você me contou parece muito divertido. – Ele acena de novo, antes de - com todo seu jeitinho cuidadoso, pegar a xícara que era maior que suas mãozinhas, tomando um pequeno gole do chá. – E você, Emily, o que você fez nessa semana, meu amor? – A encaro, e ela pisca seus grandes olhos, tentando afastar da testa a adorável franjinha de fios quase brancos.
– Eu brinquei de Drácula, mamãe. – Ela afasta de novo os cabelos da testa, antes de beber seu chá também.
– A Lily queria pegar uma flor no jardim, mas a Lucilli não deixou, mamãe. Ela falou que tá muito frio lá fora, não é, Lily? – Evan encara a irmã, a chamando pelo apelido. Me lembro de como ele demorou algum tempo para conseguir aprender a pronunciar o nome dela, então a chamava de Lily porque era mais fácil.
Emily não responde com palavras, apenas acena, enquanto puxa seu ursinho para o colo e bebe mais um pouco de chá.
– Hm, é uma pena mesmo, meu amor. Mas nós podemos fazer o que vocês quiserem amanhã.
– E brincar na neve, mamãe? – Evan me pergunta com expectativa, batendo seus pezinhos na cadeira, fazendo seus cabelos balançarem de forma agitada.
– Vamos passar o dia todinho brincando na neve amanhã. E depois vamos comer um montão de biscoitos e beber muito chocolate quente, o que acha?
Evan para de se mexer sobre a cadeira, e seus ombros caem, enquanto ele me encara com os olhos arregalados e a boca aberta. E então, ele assente de forma animada com a ideia, me fazendo rir.
Terminamos o nosso chá enquanto escutei tudo que Evan tinha para me contar. Emily falava vez ou outra, mas observava o irmão com atenção e admiração, não soltando seu ursinho em nenhum momento.
Quando acabamos, recolho todas as xícaras e levo para a pia, lavando-as com calma, até sentir algo puxando a barra do meu vestido. Olho para baixo e vejo Emily de pé, encarando o chão com um olhar triste.
Seco as mãos em um pano de prato que havia por perto e me agacho para ficar do seu tamanho.
– O que foi, meu amorzinho? Aconteceu alguma coisa? – Afago levemente seus cabelos macios, e ela segura minha mão, a apertando levemente.
– Mamãe... eu também posso brincar na neve com você e o irmão? – Seus belos olhos encontram os meus, e ela me encara tristinha. Emily tinha esse jeito mais contido e, apesar de tudo, ela ainda era mais sentimental do que Evan.
– Mas é claro que pode. Nós três vamos brincar muito amanhã. E depois vamos no bosque admirar as flores que você gosta, nessa época do ano elas ficam todas cobertas de neve, parecendo pequenos bonequinhos. – Seus olhos mudam de tristes para surpresos. – O que me diz, você gostou? – Ela assente e me dá aquele lindo sorriso que ela tinha, antes de me abraçar.
Quando termino de ajeitar a louça, pego os meus pequenos bebês no colo e os levo para o andar de cima.
– Mamãe, eu não tô com sono. – Evan resmunga enquanto coça os olhos e boceja.
– O que disse, mocinho? – Estreito os olhos e rio baixo.
Emily estava com a cabeça deitada no meu ombro esquerdo, balançando seus pezinhos cobertos pelas meias felpudas rosas.
Caminho pelo corredor iluminado pelas luminárias de cristal, e vou até a única porta colorida.
Coloco os dois em suas camas e os ajeito confortavelmente nas cobertas.
– Conta uma história, mamãe. – Emily pede, enquanto me abraçava pelo pescoço.
– Tudo bem. – Beijo a ponta do seu nariz, a fazendo rir, e então ela ergue o ursinho em minha direção para que eu o beije também. E após fazer isso, caminho até a estante polida que havia no quarto enfeitado por brinquedos, papel de parede colorido e tapete fofinho.
Deslizo os meus dedos pelos livros e paro sobre um de capa azul-marinho. Puxo o livro para fora da estante e as letras douradas logo saltam as vistas: Sirena del Atlantis. Esse era um dos livros favoritos deles, Wendy que os presenteou, dizendo que aquela era a melhor história sobre sereias do mundo.
Me aproximo de novo das camas com dosséis, e me sento na cadeira branca enfeitada que havia entre elas. Ligo o pequeno abajur em forma de urso e abro o livro.
Evan e Emily me observavam, mas eu já percebia seus olhinhos se fechando vagarosamente, então logo comecei a contar a história de uma bela sereia de cabelos dourados e olhos azuis como o oceano, que foi sequestrada por um encrenqueiro pirata que a levou para muitas aventuras.
Por um momento, desvio o olhar do livro e percebo que eles já haviam dormido, como imaginei. Os meus bebês sempre dormiam antes que eu finalizasse o livro, por isso, nunca sabiam o que acontecia com a Serena e o Capitão Hanna. Talvez um dia eu consiga terminar essa história, acho que eles ficariam animados com o final surpreendente.
Me levanto em silêncio e guardo o livro de volta na estante. Depois dou um terno beijo de boa noite em cada um e desligo o abajur, deixando a porta do quarto entreaberta, caso algum deles acorde.
No corredor, espreguiço os meus braços enquanto sinto os meus cabelos longos roçarem em meus ombros e costas descobertos pelo vestido. Puxo os fios para o lado, os colocando apenas sobre um dos ombros, antes dos meus olhos se atraírem para a porta do outro lado do corredor.
Com o ressoar baixo dos saltos das minhas sandálias, caminho até à porta de marfim, a abrindo em um girar de maçaneta. Quando os meus pés tocam o chão coberto pelo carpete vermelho com linhas douradas, todo o meu corpo é invadido por uma sensação nostálgica que revira o meu estômago.
A primeira coisa que vejo ao acender a luz, é o lindo vestido de noiva que Madame Dorothea fez para mim. Me aproximo dele lentamente, tocando o véu e o resto do vestido como se fosse algo tão delicado que pudesse desmanchar ao toque. Ele já era lindo e ficou perfeito quanto ela terminou todos os detalhes. Mas me sinto melancólica quando olho um pouco mais para o lado, vendo a capa vinho-escuro pendurada em outro manequim, por isso, me afasto, indo para perto da enorme estante polida, da qual, atrás dos vidros brilhantes, guardava potes de ervas, itens místicos, livros sobre criaturas místicas e muitas fotos.
Os meus dedos tocam o vidro, deixando marcas, quando observo a foto em que Meg estava. Suspiro e encaro a foto do lado; dessa vez Meg havia sumido e Wendy estava em seu lugar. Vou para a próxima foto, que me faz sorrir ao vislumbrar o sorriso gentil de Jhoel posando ao meu lado. Após me salvar naquela floresta, cuidando de mim por dias, eu nunca poderia esquecê-lo, quero o senhor na minha vida para sempre. A próxima foto também me faz sorrir, era a minha mãe segurando os meus gêmeos pouco depois que eles nasceram, ela estava com os olhos vermelhos de choro e sorria tão abertamente para a lente da câmera que era contagiante.
As fotos seguintes fazem o meu coração apertar: uma havia sido tirada no aniversário da Wendy, na Transilvânia, e todos aqueles irmãos vampiros juntos de Blarie, posavam comigo e com a minha equipe. Lembro-me de Jimin insistir que registrássemos esse momento, e então eu tenho essa preciosa foto. Já a outra, a última, trazia uma onda ardente que ameaçava subir por minha garganta, enquanto encaro a foto pequena e velha de Hyun. O garotinho estava sério como sempre, mas rodeado pelas bonecas que mais gostava.
Fecho os olhos e me afasto do vidro, me virando de costas para as fotos antes que começasse a chorar. Expiro profundamente, me recordando de algumas memórias dolorosas, em especial das que lembro receber a notícia da morte de Hyun e Jin. Aquilo foi tão difícil, lembro de chorar como se fosse uma perdida arrasada e, naquele momento, eu realmente era isso.
Engulo o choro e respiro fundo, me virando de novo para as fotos, agora tentando trazer lembranças positivas. Eu sei que dói, e não importa o quanto eu pense em como Hyun se daria tão bem com os meus filhos, ou em como Lilu podia ter alegrado os dias de Jin, nada parece melhorar isso.
Respiro fundo de novo e me empurro para dias brilhantes, como, por exemplo, hoje. Mais cedo conversei com Lilu ao telefone e soube do caos que ela está fazendo na Transilvânia com Hoseok, e isso me faz sorrir involuntariamente. Eu preciso visitá-la, mal posso esperar para ver o tamanho da sua barriga de grávida. Ela e Hoseok devem estar enlouquecendo Skull naquele castelo, eu até consigo imaginar ele correndo de um lado para o outro, enquanto uma Lilu com um grande barrigão bagunça tudo, enquanto briga com Hoseok sobre ele ser o culpado dela estar parecendo uma grande melancia. Bem, pelo menos foi assim que ela se descreveu para mim.
Nesse exato momento, penso que Blarie e Yoongi estão aproveitando sua lua de mel que já dura dois anos, enquanto Jungkook e Jimin, que foram viajar com eles, arrumam confusão em cada lugar que passam. Eu definitivamente sei que Jungkook já deve ter quebrado centenas de corações por onde andou, embora ele ainda continue me mandando algumas mensagens descaradas até hoje, apenas para me provocar como de costume.
Jimin me disse que está aproveitando cada lugar que visita, e que comprou muitas coisas para Evan e Emily. Ele disse que está morrendo de saudades dos sobrinhos, e eu digo que estou morrendo de saudades do meu melhor amigo.
Os meus olhos vagam pela foto com as bordas amassadas, até encontrarem o sorriso de covinhas. Me pergunto o que Namjoon deve estar fazendo agora? Mas sei que ele se recusa a falar sobre isso. Quando toda bagunça acabou, ele simplesmente sumiu, mas, às vezes, manda algumas cartas para avisar que está vivo e que está tirando férias da vida de vampiro, embora ele seja o que mais traz notícias sobre a igreja.
Por fim, os meus olhos se perdem naquele que era o mais bonito da foto, e meu coração salta, enquanto meu corpo se arrepia subitamente. Me sinto estranha e, por isso, espio sobre os ombros, tendo a impressão de não estar mais sozinha aqui. Os meus olhos atentos varrem toda a minha sala particular dos tesouros, mas não vejo nada, porém, escuto com clareza quando uma porta range baixo, me deixando nervosa.
Me aproximo da escrivaninha e tateio embaixo dela, encontrando a chave escondida que abre uma das gavetas. Puxo o fundo falso e pego o revólver escondido, destravando-o lentamente para não fazer muito barulho.
Silenciosamente deixo a minha sala dos tesouros particulares e apago a luz, fechando a porta logo em seguida. Ergo a arma, a segurando com força, enquanto os meus olhos atentos passam por cada parte do corredor que atravesso. O meu coração dá um pequeno salto quando vejo a porta do quarto de Evan e Emily totalmente aberta. Abro minimamente a boca e tento respirar fundo, convencendo a mim mesma que podia ser apenas algum deles que acordou, mesmo que eu soubesse que eles sempre me chamam quando fazem isso.
Não consigo me controlar, e acabo correndo em direção à porta colorida, apontando o revólver para quem quer que estivesse ali dentro.
– É assim que a minha mulher me recebe quando eu volto para casa? – Ele diz, parado entre as duas camas, desviando seu olhar intenso das duas crianças adormecidas.
– Você me assustou de novo. Eu já disse pra parar de fazer isso. – Suspiro, falando baixo para não acordar as crianças.
Taehyung encara uma última vez os filhos, antes de sair silenciosamente do quarto, passando por mim. Seus olhos castanhos me fitam por alguns segundos, antes que ele comece a caminhar pelo corredor, indo em direção às escadas que levavam para o terceiro andar.
Vendo sua figura sumir pelo corredor, refaço meu caminho e guardo o revólver de volta na escrivaninha, e depois sigo o mesmo caminho que ele fez. E então, dessa forma, eu sabia onde ele estava. Passo em frente à porta do meu quarto e vou para a que ficava do lado, dando dentro de uma grande e organizada sala de música, com os mais variados instrumentos espalhados pelos cantos.
As janelas estavam abertas, deixando o vento frio entrar, enquanto balançava as cortinas claras e trazia alguns flocos de neve junto.
Taehyung estava parado ao lado do piano, encarando o bonito buquê que deixei ali em cima. Lentamente me aproximo dele e pego o buquê, observando as sementes brancas dos dentes-de-leão; embora o vento tenha desfeito algumas.
– Comprei pra você. – Digo. – Toda vez que assoprar uma delas, poderá pedir algo que quer muito e, então, assim, vai realizar todos os seus desejos.
Ele encara o buquê de novo e o toma de minhas mãos. Uma lufada barulhenta de vento passa por nós, balançado o meu vestido e os nossos cabelos, enquanto soprava algumas sementes de dente-de-leão pela sala de música.
Taehyung coloca cuidadosamente o buquê em cima do piano, e depois ele rodeia minha cintura, me trazendo para perto.
– Eu já tenho tudo que eu quero. – Ele diz, e eu passo os braços ao redor do seu pescoço, sorrindo como uma apaixonada.
– Eu estou incluída nisso? – Pergunto, aproximando o meu rosto do seu.
Ele sorri de lado, antes de tocar nossos narizes.
– Com certeza. – Seus dedos passeiam por minhas costas e o arrepio seguinte não vem por conta do frio, pois sei que nada me deixa mais quente do que estar nos braços do meu marido.
– Como foi a sua viagem? – Pergunto, enterrando os dedos por seus belos cabelos longos que já estavam maiores que os meus. Ele era lindo de todas as formas, mas com esses cabelos macios e brilhantes que escorregavam por suas costas, ele parecia um lindo pecado pintado em um quadro.
– Afastamos um pequeno grupo de lobos por perto, eles estão desaparecendo aos poucos. É melhor assim. – O sorriso foge de seus lábios e ele fica sério por alguns segundos.
Assim como eu sempre viajo uma vez por mês, durante uma semana, para checar as bases das nossas igrejas e espiar o Vaticano, Taehyung fazia o mesmo. De fato, mais do que nunca, ele era o Drácula, o vampiro mais respeitado e temido entre todos. Sei tudo que ele passou por muito nos últimos anos, desde que matou Henry e Kihyun naquela madrugada, mas, apesar das perdas que ocorreram como consequência, isso o impulsionou a ser o poderoso vampiro que ele se tornou hoje.
– Teremos muito trabalho amanhã. Vai ser um dia cheio, brincando na neve e passeando no bosque. – Digo, tentando mudar de assunto, querendo aproveitar a sua chegada com momentos felizes.
Os olhos de Taehyung ganham vida e cor, e logo ele sabe que estou falando dos nossos filhos. Quando decidi ter Evan e Emily com total certeza, eu soube que ninguém seria tão bom para mim como Taehyung. Confesso que não foi uma gravidez fácil, mas ele sempre tentou melhorar tudo, e ficou do meu lado até que eu conseguisse dar à luz aos nossos lindos bebês. E foi então que eu conheci um novo lado dele, talvez o que eu mais goste: o seu lado paternal. Por mais que Taehyung tivesse tido uma relação destrutivamente ruim com Henry, eu sei que ele ama nossos filhos com a mesma intensidade que Amélia amou a ele e seus irmãos. Evan espontaneamente adora o pai, e se pudesse, passava o dia todo pendurado em seus braços, dizendo o quanto achava o pai incrível. E Emily simplesmente é sua garotinha preciosa, e ele a fazia se sentir a pessoa mais especial de todo o mundo, do mesmo jeito que ele fazia comigo.
– Logo também será natal e os seus irmãos prometeram que vão se reunir com a gente. – Continuo.
– Essa casa vai ficar barulhenta. – Ele bufa, resmungando da sua maneira irritante que eu tanto amava.
Rio nasalada.
– Essa casa tem sido barulhenta nos últimos quatro anos e meio. – Falo baixo, como se o contasse um segredo, e ele sorri de lado.
Desde que Evan e Emily nasceram, tudo que temos nessa casa é barulho e mais barulho, bagunça, risadas, objetos quebrados, paredes riscadas e mais bagunça. Mas não posso dizer que não amo tudo isso.
– Devemos fazer um belo jantar para receber seus irmãos e as garotas. – Sugiro, mas logo um lampejo surge em minha mente. – Algo melhor, poderíamos fazer um baile de máscaras, o que acha? – Sorrio animada e convidativa para ele, e Taehyung retribui com um sorriso que faz minhas pernas fraquejarem embaixo do meu vestido longo.
– É o que a Senhora Dracul deseja? – Ele pergunta baixo, com a voz grave e rouca, enquanto arrasta seus dedos para a parte descoberta das minhas costas, tocando minha pele.
– Sim. – Sorrio ainda mais, aproximando meu rosto do seu, ficando na ponta dos pés.
– Então faremos o maior baile de máscaras que já se viu. – Ele me deixa ver seu sedutor sorriso por mais alguns segundos, antes de, finalmente, selar nossos lábios, me fazendo suspirar com o toque de nossas bocas como se fosse a primeira vez.
Não demora até que sua língua se envolva com a minha, sincronizando um ritmo lento e viciante, deixando meu corpo ainda mais quente do que já estava. Suas mãos deslizam até a minha cintura, apertando sutilmente o local, enquanto escorrego os dedos para dentro dos seus cabelos longos que se emaranham em torno dos meus dois anéis.
Ele interrompe nosso beijo com alguns selares estalados e rápidos, me encarando fervorosamente como se eu fosse única. E isso fazia com que eu me apaixonasse cada dia mais por ele.
Taehyung fita sugestivamente o piano, e eu logo entendo. Com um pouco de relutância, me solto dele e me sento no banquinho acolchoado do piano, ao seu lado. E juntos, nós dois tocamos as teclas pretas e brancas, iniciando uma melodia suave e bonita que se mistura com os uivos de ventos que traziam os flocos de neve para dentro.
Fecho os olhos e me deixo levar pelo ritmo da melodia, balançando os meus dedos de uma tecla para a outra, enquanto me lembro de todas as aulas de piano que ele me deu, onde, no final, sempre acabamos sem roupas de algum jeito. Sinto minhas bochechas esquentarem e contenho um sorriso, mas meu corpo se arrepia quando seus dedos deslizam por cima dos meus, atravessando as teclas enquanto ele continuava a atacar.
Abro os olhos e o encaro, o vendo me fitar descaradamente, cobrindo os meus dedos com os seus, enquanto começava a apertar as teclas em meu lugar, como fazia quando ainda me ensinava. O simples toque parece demais para mim, por isso, puxo minhas mãos para fora do piano e o beijo outra vez.
O sinto sorrir entre nosso novo beijo, e logo suas mãos voltam para minha cintura, me puxando para o seu colo até que eu esteja sentada confortavelmente. Sua boca corre até o meu maxilar, descendo por meu pescoço de forma molhada, enquanto a ponta da sua língua traça minha pele arrepiada. Em seguida, seus lábios se arrastam para o lado, ficando na lateral do pescoço, e então, sua boca para sobre o lugar que carrega uma marca feita por ele. Taehyung fica alguns segundos apenas sentindo o cheiro da minha pele quente, antes de enfiar suas presas para dentro de mim, me fazendo apertar seus ombros quando sinto a familiar fisgada. Um suspiro escapa dos meus lábios quando ele começa a sugar o meu sangue, e tudo que posso fazer é segurar com força os seus cabelos, enquanto encontro aquela sensação que passou a fazer parte das nossas vidas nos últimos anos.
Quando se sente satisfeito, ele retira suas presas da minha pele, fazendo o sangue escorrer quente por meu pescoço, atravessando o ombro e parte do meu colo, sujando o topo do meu lindo vestido claro.
Ele roça os lábios no lugar e depois limpa a sujeira com sua língua quente, me fazendo contorcer em seu colo. Eu sabia como isso iria terminar, e acho que quero mais do que ele.
Taehyung volta para perto do meu rosto, me deixando ver seus belos traços de boca manchada de sangue e olhos vermelhos.
– Você sempre será o amor da minha vida e da minha morte. Eu vou te amar para sempre, Elena Van Helsing. – Ele diz em um incrível contato visual que faz meu coração saltar várias e várias vezes, enquanto me sinto ansiosa como uma boba.
– Você sempre será o amor da minha vida e da minha morte. Eu vou te amar para sempre, Taehyung Dracul. – Repito suas palavras, aproximando meu rosto do seu, vendo um lindo sorriso em seus lábios manchados. E então, nos beijamos da forma mais apaixonada que podíamos, compartilhando o gosto do sangue quente e doce, enquanto nos amávamos até que o mundo ao nosso redor deixasse de existir.

FIM