SEGUNDO CAPÍTULO
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%Ágata% franziu o cenho involuntariamente com a forma que o homem respondeu a uma simples pergunta como aquela, mas ele deveria estar de passagem na cidade, já que carregava uma mala e turistas naquela época do ano era algo mais do que normal. Talvez ele só estivesse desesperado por um presente. Não é?
Ele tinha um ar intrigante, vestido com um sobretudo escuro e um cachecol de lã cinza, que parecia combinar perfeitamente com a noite fria lá fora.
— E como eu posso ajudar então? — %Ágata% voltou a perguntar.
O homem sorriu, mas não respondeu imediatamente. Ele se aproximou alguns passos, os olhos varrendo as prateleiras ao redor, como se examinasse o local.
— Essa livraria tem história — disse ele, finalmente, com uma voz baixa e calma.
— É o que dizem. Mas se está aqui só para admirar a arquitetura, sugiro que volte amanhã. Estamos fechando.
— Quinze minutos mais cedo? — ele perguntou, erguendo uma sobrancelha.
Ela piscou, surpresa. Como ele sabia disso? Hesitou por um momento antes de recuperar a compostura.
— Sim, ninguém mais vai aparecer hoje. Então, a menos que queira comprar algo, estou fechando.
O homem riu suavemente, um som que pareceu tanto familiar quanto irritante.
— Talvez eu tenha vindo para comprar, mas não um livro.
%Ágata% sentiu um calafrio. Havia algo em suas palavras que a desconcertava, embora não pudesse explicar exatamente o que era.
— Então diga logo o que quer, porque eu não tenho tempo para jogos.
Ele inclinou levemente a cabeça, como se estivesse avaliando-a.
— Eu quero ajudá-la, %Ágata%.
A menção de seu nome a fez congelar. Ela não se lembrava de ter se apresentado. Seu nome não estava em nenhum lugar visível na loja.
— Como você sabe meu nome? — perguntou, a voz endurecida.
O homem deu um passo à frente, mas manteve uma distância respeitosa.
— Eu sei muito sobre você. E sobre esta livraria. Digamos que... sou um amigo da família.
%Ágata% deu um riso seco.
— Família? Boa tentativa. Não tenho família, só essa livraria que mais parece uma maldição.
— Talvez não seja uma maldição, e sim um presente — disse ele, com um olhar que parecia penetrar sua alma.
Antes que ela pudesse responder, ele estendeu um envelope amarelado, o papel desgastado pelo tempo. No verso, em uma caligrafia que ela reconheceu de imediato, estava escrito seu nome.
— Onde conseguiu isso? — ela perguntou, sua voz quase um sussurro.
— Do único lugar onde ele sabia que você encontraria:
aqui.
%Ágata% pegou o envelope com dedos trêmulos. Ela o abriu, revelando uma carta escrita à mão:
Se você está lendo isso, significa que o destino decidiu nos colocar à prova. Mas acredite, há mais nesta livraria do que livros. Há segredos que esperaram tempo demais para serem revelados. Procure na seção de poesia, no livro que sempre foi meu favorito.” Ela levantou os olhos, mas o homem já estava se dirigindo à porta.
— Espere! Quem é você? — ela chamou, mas ele apenas sorriu antes de desaparecer no por do sol da tarde fria, deixando-a com mais perguntas do que respostas.
❄️❄️❄️
%Ágata% segurava a carta com firmeza, os dedos trêmulos sobre o papel. Ela reconhecera a caligrafia no instante em que abrira o envelope. Era dele.
O coração disparava em seu peito, como se cada batida tentasse acompanhar o turbilhão de pensamentos que inundava sua mente. Seu avô havia falecido anos atrás, mas aquela letra era inconfundível — elegante, quase formal, com curvas que só alguém que ainda usava canetas-tinteiro seria capaz de produzir.
Ela leu novamente as palavras, como se buscasse algum significado oculto.
A livraria parecia mais silenciosa do que nunca. Lá fora, o som distante de vozes e passos se misturava ao vento gelado que começava a soprar. Mas dentro daquele espaço, apenas o som de sua respiração preenchia o ar.
Ela olhou para a carta novamente, como se tentasse extrair mais do que as palavras ofereciam. O
"favorito" dele... Ela sabia o que significava. Seu avô sempre falava com carinho de
William Wordsworth, mencionando como os poemas do autor o haviam acompanhado em momentos difíceis.
"Isso é loucura," murmurou para si mesma, tentando racionalizar o que acabara de acontecer. Mas a curiosidade, tão persistente quanto incômoda, já estava enraizada.
Com passos hesitantes, ela caminhou até a porta e a trancou novamente, virando a placa para
Fechado. Apagou as luzes principais, deixando apenas o brilho das luminárias mais próximas para iluminar o caminho até a seção de poesia.
Era uma parte da livraria que ela raramente frequentava. Poesia não vendia como antes, e as prateleiras naquele canto pareciam carregadas de um ar melancólico. Seus dedos deslizaram por várias lombadas até encontrarem o que procuravam: uma edição antiga, encadernada em couro marrom, com letras douradas que destacavam o nome do poeta.
Ela puxou o volume com cuidado, sentindo o peso do tempo sobre o objeto. Ao abrir a capa, encontrou exatamente o que temia — ou talvez esperasse: uma dedicatória escrita com a mesma caligrafia da carta.
"Para minha neta, que um dia entenderá o valor das palavras e das memórias." %Ágata% engoliu em seco, a garganta apertada. O que ele queria que ela encontrasse?
Virou as páginas com cuidado, até que algo caiu de dentro do livro e pousou no chão com um som abafado. Era um envelope menor, selado com cera vermelha.
Ela o pegou, o coração disparado, e abriu cuidadosamente. Lá dentro havia um bilhete ainda mais enigmático:
"%Ágata%, o passado guarda respostas. Mas para encontrá-las, você precisará dar o primeiro passo. Procure no canto mais velho da livraria." O coração dela apertou. O canto mais velho. O porão.
Por anos, ela evitara aquele lugar. Ele era pouco mais do que uma extensão abandonada da livraria, repleta de poeira e caixas esquecidas. Mas agora, parecia que tudo a conduzia para lá.
%Ágata% fechou o livro e respirou fundo. Antes de descer, deu uma última olhada ao redor da livraria, como se esperasse que o homem misterioso ainda estivesse ali, observando-a. Mas não havia ninguém.
Com passos firmes e o bilhete em mãos, ela começou a caminhar em direção à porta que levava ao porão.
%Ágata% olhou para a porta, seu coração batendo em um ritmo descompassado. O bilhete ainda tremia em sua mão, como se tivesse peso próprio, um peso que ela não sabia se estava pronta para carregar.
“Isso é ridículo,” murmurou, a voz ecoando no silêncio da livraria
. “Estou aqui, me deixando levar por enigmas de uma carta escrita por um homem morto há anos. Que tipo de loucura é essa?” Ela se virou, as mãos agora apertando o bilhete com mais força. A ideia de entrar no porão, revirar caixas e encontrar sabe-se lá o quê... Tudo parecia absurdo. %Ágata% soltou um suspiro irritado, esfregando o rosto com as mãos.
“Eu só estou cansada. É isso. Cansada e impressionável,” continuou resmungando para si mesma, como se tentar racionalizar a situação pudesse aliviar o peso do momento.
Caminhou até o balcão, onde deixou o livro e o envelope de forma abrupta. As palavras da carta ainda ecoavam em sua mente, mas ela as afastou com um movimento de cabeça.
“Eu não tenho tempo pra isso. Nem paciência. Nem... coragem.” O som da porta de vidro balançando levemente com o vento fez com que ela erguesse o olhar para o relógio na parede. Já eram quase 18h. Bem mais tarde do que pretendia ficar ali.
Decidida a deixar aquela aventura para um outro dia — ou para nunca mais —, %Ágata% começou a pegar suas coisas. Enfiou o casaco pesado sobre os ombros, pegou sua bolsa e apagou as luzes da livraria, deixando apenas a fraca iluminação externa iluminando o ambiente.
Antes de sair, parou e olhou para o balcão novamente. O livro, agora sob a penumbra, parecia ainda mais antigo, como se esperasse por algo.
“Besteira,” murmurou mais uma vez, sacudindo a cabeça.
Ela girou a chave na fechadura e saiu para o vento frio da noite.
❄️❄️❄️
%Ágata% caminhou pelas ruas de Portsmouth com passos apressados, o vento cortante trazendo consigo o cheiro de neve. As luzes natalinas brilhavam ao longo das fachadas, um contraste gritante com o humor sombrio que a acompanhava.
Ela entrou no pequeno prédio de tijolos onde morava, subindo os degraus desgastados até o segundo andar. O apartamento era modesto, mas aconchegante — o tipo de lugar que servia mais como refúgio do que como lar.
Assim que fechou a porta atrás de si, largou a bolsa e o casaco em uma cadeira próxima e caminhou direto para o banheiro. A sensação de estar cercada pelo calor do chuveiro parecia a única coisa capaz de afastar a inquietação que crescia dentro dela.
Ligou a água quente, esperando que o vapor começasse a embaçar o espelho. Enquanto tirava a roupa, seus olhos foram atraídos para o reflexo: o cansaço estampado em seu rosto, as linhas de preocupação que pareciam mais profundas naquela noite.
“Esquece isso,” murmurou para si mesma.
“É só... uma carta. Um livro velho. Nada disso significa alguma coisa.” Entrou debaixo da água quente, fechando os olhos enquanto o calor aliviava a tensão em seus ombros. Tentou se concentrar no som da água, deixando-o abafar os pensamentos que insistiam em voltar.
A caligrafia no bilhete, a lembrança do avô, o estranho que surgira na livraria... Tudo se entrelaçava em sua mente como uma história que ainda não fazia sentido. E quanto mais tentava afastar essas imagens, mais elas se aproximavam, como sombras persistentes.
%Ágata% passou as mãos pelo rosto, esfregando com mais força do que o necessário.
“Pare com isso. Não tem nada lá. E mesmo que tivesse, que diferença faria?” Ela sabia que estava tentando convencer a si mesma, mas o desconforto no fundo do peito não a deixava em paz. Era como se algo, ou alguém, a empurrasse para frente, pedindo que ela olhasse mais de perto, que enfrentasse o que quer que estivesse escondido naquele porão.
Depois de alguns minutos, desligou o chuveiro e se enrolou em uma toalha macia. O vapor preenchia o banheiro, tornando o ambiente mais abafado, mas também estranhamente acolhedor.
“É só o Natal mexendo comigo,” concluiu em voz alta, como se a afirmação pudesse ser suficiente para encerrar o assunto.
Vestiu um pijama confortável e foi para a cozinha preparar uma xícara de chá. Talvez o calor da bebida ajudasse a clarear os pensamentos. Mas mesmo enquanto mexia a colher na caneca, a sensação de que algo estava por vir não desaparecia.
Sentou-se no sofá, o chá entre as mãos, e olhou para as luzes de Natal piscando através da janela. No silêncio do apartamento, apenas o som fraco do aquecedor competia com o eco de suas lembranças.
E pela primeira vez em muito tempo, %Ágata% se sentiu à beira de algo que não sabia se queria enfrentar.
❄️❄️❄️