Ballet Shoes


Escrita porElla Souza
Editada por Isabelle Castro


Capítulo II

Tempo estimado de leitura: 23 minutos

  Uma semana já havia passado desde que eu recebera a minha carta para Hogwarts, também conhecida como London Royal Academy, e eu não conseguia conter a minha animação. Louis já tinha partido há alguns dias para procurar o apartamento que nós dois dividiríamos e eu seguiria para Londres nos próximos dois dias. Usaria aquele tempo que me restava em Paris para empacotar as coisas que eu levaria para o meu novo lar, me despedir dos meus avós e dos poucos amigos que tinha e a parte mais complicada... Dar a noticia da mudança para a minha mãe. Papai já estava sabendo de tudo e aguardava a minha chegada, mas a minha mãe Johanna daria um pouco de trabalho e provavelmente não gostaria tanto da idéia de me ter longe assim. Não que agente se encontrasse toda semana, mas ela gostava de saber que eu estava no mesmo país que ela, principalmente por ser o mais longe possível de meu pai.
  Estacionei o carro em frente ao prédio de minha mãe e desci do veículo, trancando-o atrás de mim. Meus cabelos logo foram bagunçados pela rajada de vento frio que praticamente congelou o meu rosto e, como reflexo, apertei o meu sobretudo marrom contra o corpo. Era possível ver o vapor saindo dos meus lábios na medida em que eu ofegava ao subir a escadaria que me levaria até a portaria do prédio.
  - Boa tarde, senhorita Darling. – Jeffrey, o porteiro, me cumprimentou enquanto abria as portas para que eu passasse. Ainda era estranho ser chamada pelo sobrenome da minha mãe, já que eu costumava usar o de meu pai.
  - Boa tarde, Jeff! Minha mãe deve estar me esperando, então você não precisa ligar pra ela. – Não queria perder mais tempo ali embaixo, só desejava me livrar de uma vez desse nervosismo que estava me dominando. – Vou indo... – Me despedi com um sorriso e um aceno de cabeça.
  - Sem problemas, %Star%, você já é da casa. – Sempre tão simpático, o senhor de meia idade me acompanhou até os elevadores e logo voltou para o seu lugar, me deixando sozinha com meus pensamentos.
  É claro que eu estava com medo da reação da minha mãe, mas ela não poderia me impedir de viajar. Eu iria para Londres de qualquer forma, só que preferia partir sem deixá-la chateada. Entrei no elevador assim que as portas automáticas se abriram e apertei o botão para o sétimo andar. A subida foi terrivelmente lenta e eu repassei na minha mente todas as minhas falas, testando o melhor jeito de dar a noticia. Nervosamente passei as mãos pelos meus cabelos castanhos e senti o solavanco que o elevador costumava dar quando estava chegando ao seu destino. “Sétimo andar. Descendo.” As portas se abriram assim que a voz automática informou o andar e eu caminhei rapidamente para fora, procurando a porta do apartamento de mamãe.
  “Diiiiiing dong”, fez o barulho da campainha assim que eu a apertei. Escutei o barulho de algo sendo derrubado ao lado de dentro e a voz da minha mãe reclamando alguma coisa que não consegui decifrar o que era. Conhecendo o seu jeito estabanado de ser, foi fácil imaginar uma cena em que ela derrubava alguma coisa pesada no chão e depois saía reclamando pela casa coisas em uma língua desconhecida. Esse pensamento me fez rir tanto que nem ao menos me dei conta de que a porta já estava aberta e Johanna me encarava com um sorriso infantil nos lábios. Parecia ofegante, seus cabelos estavam bagunçados e uma mancha de argila molhada em sua bochecha denunciava que ela estivera trabalhando em alguma escultura.
  - Mãe! – Ela me puxou para um abraço e eu logo o retribuí. – Espero que não esteja te atrapalhando. Eu sei que disse que ia passar aqui à noite, mas...
  - %Star%, meu amor. Que saudade. Parece até que você cresceu. – Me cortou, já separando o abraço e me fazendo entrar. O lugar estava do mesmo jeito que eu conseguia me lembrar. Abarrotado de obras de arte, finalizadas ou não, e instrumentos de trabalho que eu não fazia ideia de suas utilidades. Parecia mais um atelier do que a casa de alguém. Além disso, avistei peças de roupa espalhadas por um dos cantos da sala e uma pilha de pratos sujos por cima da mesa da cozinha.
  - É, já faz algum tempo que a gente não se encontra. – Caminhei até o sofá e me sentei, esperando que ela fizesse o mesmo. – Mãe, eu vim aqui hoje porque tenho um assunto delicado pra tratar com você.
  - Assunto delicado? O que houve, %Star%? É a minha mãe? Alguém está doente? – Fui bombardeada por suas perguntas e ela se sentou na mesinha de centro, em frente a mim.
  - Mãe, não é nada... – Tentei fazê-la se calar.
  – Onde está seu irmão? Por que ele não veio com você? Ai, meu Deus, algo aconteceu com o seu irmão?!
  - MÃE! – Gritei. Ela me olhou espantada, mas pelo menos se calou, me dando a oportunidade de continuar. – Não é nada disso, a vovó e o Lou estão ótimos. O que tenho pra falar é sobre mim, mas por favor não me interrompa.
  - Só me diga que você não está grávida.
  - Mãe! – Mais uma vez a repreendi, segurando as alças da minha bolsa de mão com força. Esse era um dos motivos que me fazia evitar conversas sérias com ela.
  - Eu só estava me certificando, filha. Não quero que você cometa os mesmos erros que eu e fique grávida muito cedo.
  - Ok, ok. – Rolei os olhos. – Posso continuar?
  - Sim, continue. – Ela pareceu se contentar em me escutar e me olhou com curiosidade.
  - Bem... – Suspirei fundo e juntei toda a minha coragem para continuar. – Você lembra que eu fiz um teste para uma academia de ballet? Então. Eu fui aceita, mãe. Eu passei! – Foi impossível conter um sorriso de animação enquanto esperava alguma reação da parte da outra.
  - Isso é maravilhoso, %Estrelinha%! Eu sempre soube que você conseguiria. Nossa, eu estou tão feliz! – Ela comemorou, me fazendo sorrir ainda mais. Eu teria pulado em seus braços e a abraçaria com todas as minhas forças se a pior parte não estivesse por vir. Ainda faltava um detalhe que eu teria que falar.
  - É maravilhoso sim! E é o meu sonho... Finalmente parece que tudo está dando certo. Só tem mais uma coisa que eu preciso te contar. A academia é em Londres. – Na última frase a minha voz falhou. Por mais que eu tivesse tentado suavizar cada palavra, a verdade seria dolorosa demais; ao menos para ela.
  - Como é? – Seus olhos se arregalaram e eu tenho certeza que vi suas pupilas dilatarem.
  - A academia em que eu fui aceita é em Londres... – Repeti com a esperança de que ela aceitasse numa boa. Mas, só pra variar, eu estava errada. Assisti a minha mãe se levantar e colocar as duas mãos nas laterais do rosto e mexer a boca sem emitir som algum.
   - Você não vai. Não mesmo. Está fora de cogitação. Você está louca se acha que vai morar em outro país. – Ela disse áspera, cruzando os braços como se aquela fosse a sua palavra final.
  - Você é que está louca se acha que vai me impedir de ir. – Também me levantei, largando a minha bolsa de qualquer jeito no sofá. Estava irritada e comecei a bater o pé de forma impaciente contra a madeira do chão.
  - Eu sou a sua mãe, %Star%. Se eu falo que você não vai, é porque não vai. Fim de papo! – Levantou a voz e começou a andar para a cozinha. Eu fui mais rápida e segurei-a pelo braço. A conversa não havia terminado nem de perto.
  - Você pode ser a minha mãe, mas isso não lhe dá o direito de controlar as minhas decisões. Não quando eu já sou maior de idade e perfeitamente capaz de me cuidar sozinha. – Elevei a minha voz da mesma forma que ela. Queria deixar a discussão em um mesmo nível. – Além do mais, Londres não é tão longe assim de Paris. E o meu pai mora lá, então se eu precisar de algo...
  - SEU PAI? Eu sabia que ele estava metido nisso. Ahh, o Mark me paga! – Minha mãe estava furiosa. Provavelmente amaldiçoando até os ancestrais do meu pai. – E eu aposto que aquela menininha com quem ele se casou também está metida nisso. Ela sempre quis roubar você e o seu irmão de mim!
  - Dá pra você parar de falar besteira? É claro que papai está feliz com isso, já que ele sente a minha falta. Mas eu estou indo para realizar o meu sonho, pra estudar! Será que você não entende que é a minha vida e não uma briguinha estúpida entre vocês pra saber quem vai ficar com os filhos? Porque, que eu saiba, a senhora nunca fez muito esforço para estar perto de mim ou do Louis. E TEM MAIS. – Despejei todas as verdades de uma vez, quase perdendo o fôlego ora ou outra. Antes que pudesse ser interrompida, continuei: - A Rachel não é uma menininha com quem papai se casou. Ela é um amor de pessoa e ele seria idiota se não se apaixonasse por ela. Na verdade, eu não sei como ele se apaixonou por você!
  Sei que as minhas palavras foram duras demais, mas eu não consegui aguentar calada. Eu defenderia meu pai de qualquer um, principalmente dela. Johanna nunca foi um exemplo de mãe, sempre colocando o seu trabalho na frente dos filhos. Não consigo me lembrar em nenhuma das minhas apresentações de dança ter visto minha mãe na plateia. Nas reuniões de escola, era sempre a minha avó que ia conversar com os professores. Nem ao menos na minha formatura ela fez questão de aparecer, sempre inventando alguma exposição de arte que ela “não podia deixar de ir”. Meu pai também não era o tipo de pai perfeito que estava presente em todas as ocasiões, mas pelo menos ele fazia de tudo para se redimir. Seu trabalho também era muito importante, já que ele era um oncologista de renome nacional e nem sempre podia sair do hospital na hora que quisesse. Mas sempre se preocupava com a minha vida e gostava de se manter informado. Nas noites mais importantes, ele deixava o plantão nem que fosse por uma hora e passava para me dar um beijo. Eu costumava ficar acordada até tarde, o esperando, e quando pegava no sono no sofá, era ele quem me levava para a cama e acabava dormindo comigo. Então minha mãe poderia falar qualquer coisa, contanto que não colocasse o nome do meu pai no meio.
  Ela não falou mais nada, mas o que fez em seguida foi muito pior. Levantou a mão e a próxima coisa que eu senti foi a pele do meu rosto queimar com o seu tapa. Essa era a primeira vez que alguém me batia, pois nem quando eu era criança isso tinha acontecido. Eu a olhei incrédula, com lágrimas nos olhos e ela levou a mão até a boca tapando um pequeno gemido. Provavelmente estava arrependida e tentou me tocar novamente, mas dessa vez eu fui mais rápida e afastei sua mão. Também guardei as minhas palavras, já que não adiantaria mais de nada e peguei a minha bolsa rumando até a porta.
  - %Star%, me perdoe! Eu não quis... Eu não pretendia... – Dessa vez quem chorou foi ela, vindo atrás de mim e segurando na manga do meu sobretudo. Eu nem me dei ao trabalho de parar, apenas me desvencilhei de seu toque e abri a porta. – %Star%!
  Lancei um último olhar em sua direção e a observei cair de joelhos sobre o batente da porta, chorando. Eu sabia que ela era totalmente desequilibrada e costumava aguentar os seus ataques, mas naquela tarde tinha passado de todos os limites. Engoli as minhas próprias lágrimas e parti para a escada de emergência. Não iria esperar o elevador chegar e muito menos dar tempo para Johanna começar a falar mais besteiras ou tentar se desculpar. Eu não a perdoaria, não agora. Daí pra frente só o que eu escutei foi a porta da escada batendo com força atrás de mim e o som dos meus passos apressados. Foi nesse momento que eu percebi que estava correndo. Meu corpo parecia ter vida própria, pois a minha mente não sabia o que fazer e meu corpo só queria sair daquele lugar o mais rápido possível. Eu não sabia o que pensar, não sabia o que fazer. Queria esquecer aquele momento, assim com como todas as outras brigas e decepções que meu passado em Paris guardava. Meu futuro estava na Inglaterra e eu estava mais certa daquilo do que nunca. A França era um lugar encantador e havia sido a minha casa durante a minha vida toda. É claro que eu sentiria falta das cafeterias com mesinhas nas calçadas, nas variedades de doces nas delicatessens mais caras do mundo. Eu estaria trocando a Eiffel Tower pelo Big Ben, os macarons que eu tanto amava por fish and chips, trocaria o meu francês pelo sotaque britânico. Tinha medo, mas era um medo bom. Do tipo que a gente não sabe o que tem pela frente, mas não pode esperar para descobrir.
  Passei correndo pela portaria sem nem me despedir de Jeffrey. Não queria que ele me olhasse preocupado com a mancha avermelhada em meu rosto, já que eu tinha certeza que os dedos de minha mãe estavam marcados perfeitamente na minha pele branca. Dei graças a Deus quando entrei no carro e coloquei a chave na ignição, dando a partida e seguindo pela rua quase vazia. Não me importei em ligar o rádio, pois tinha medo de que alguma música triste começasse a tocar e me fizesse chorar e colocar pra fora todas aquelas lágrimas que já estavam difíceis demais de segurar. Em aproximadamente meia hora já tinha estacionando o carro na garagem e entrava em casa, constatando que ela estava vazia. Vovó deveria estar na pracinha com umas amigas e vovô fazendo a sua caminhada de fim de tarde. Respirei aliviada por não haver ninguém lá; não conseguiria explicar como foi a conversa com a minha mãe e tenho certeza que eles perguntariam.
  Segui direto para o meu quarto, subindo as escadas e sentindo os joelhos fraquejarem. Estava exausta. Assim que entrei no quarto, tirei meu sobretudo e o larguei na minha poltrona que ficava em um dos cantos. Sente-me sobre a cama e tateei o interior da minha bolsa a procura do meu celular. Queria ligar para o meu irmão, pois ele era a única pessoa com quem eu conseguiria falar naquele momento. Tirei os sapatos e coloquei os pés na cama em seguida, deitando as costas no meu travesseiro. Disquei o número de Louis no meu iPhone e levei o aparelho até a orelha e esperei ele atender.
  - Ahoi? – O idiota atendeu, me arrancando uma gargalhada.
  - Aqui na França ainda atendem com “Alou.” A Inglaterra já te mudou tanto assim, irmãozinho?
  - Eu só estou tentando animar as coisas, %Tah%. “Alou” é muito sem graça. – Ele riu e eu pude ouvir uma voz desconhecida através do celular. – Como você está, pequena? Já se arrependeu de estar vindo pra cá?
  - Tá brincando? Eu nunca estive tão certa! – Pressionei a têmpora com os dedos da mão livre, continuando. – Por falar nisso, como vai a procura do nosso lar?
  - Já está tudo certo, %Tah%. Achei o lugar perfeito... Não exatamente eu, já que tivemos uma ajudinha. Não posso dar detalhes, porque prometi que seria uma surpresa, mas você vê quando chegar. – Preciso dizer que não entendi nada do que Louis falou? Que mistério era aquele? Eu só havia perguntado sobre o nosso apartamento. – Cale a boca, Liam! Eu não vou te mostrar uma foto dela.
  - O que está acontecendo aí? – Soltei uma risada um tanto alta ao escutar novamente aquela voz desconhecida, que eu presumi ser do tal Liam, e a resposta irritada do meu irmão. – Eu estou atrapalhado um encontro? Hmmm.
  - HÁ HÁ HÁ. Muito engraçado. – Ironizou com a minha brincadeira. – Liam é um amigo que eu conheci na agência. Nós trabalhamos juntos e tenho a impressão de que você vai conhecê-lo.
  - Só não conte mentiras ao meu respeito, por favor, ok? Ao menos não enquanto eu não estiver por perto e não puder me defender.
  - Não posso prometer nada, irmãzinha. – Senti que ele estava sorrindo do outro lado da linha. – E quando você vem? No sábado?
  - Na verdade, Lou, é por isso que eu liguei. – Estiquei as pernas sobre a cama e passei a encarar o teto. – Eu estive pensando em, talvez, quem sabe... Ir amanhã mesmo.
  - Amanhã? Você vai conseguir arrumar as suas coisas a tempo? Por mim tudo bem, já que a casa está quase pronta... – Casa? Pra mim isso era novo, já que eu achava que dividiríamos um apartamento.
  - É claro que sim! Nem que eu passe a noite inteira empacotando coisas. – Respondi rapidamente. Não queria que ele mudasse de ideia quanto ao “por mim tudo bem”.
  - Então é só comprar a sua passagem e me falar o horário que eu vou te buscar na estação.
  - Ótimo, Lou... – Suspirei, mordendo meu lábio inferior.
  - Você está estranha, %Tah%. Falou com a mãe hoje, né? – Sempre fiquei espantada com a forma que Louis me conhecia e podia notar que eu não estava bem apenas com o tom da minha voz.
  - É, eu fui dar a noticia a ela. – Rolei os olhos, mesmo sabendo que ele não podia ver.
  - E como foi? – Senti a preocupação em sua voz, talvez já sabendo qual fosse a minha resposta.
  - Terrível é uma forma de definir. Ela pirou, como sempre. Mas hoje foi pior.
  - Deixe-me adivinhar: Ela culpou o papai e disse que a Rach fez a sua cabeça?
  - Quase isso! – Ri sem humor. – Ela me bateu.
  - Ela fez o quê?! Essa mulher precisa de ajuda profissional. – Meu irmão estava bravo e se eu pudesse vê-lo, tenho certeza que a veia em seu pescoço estaria maior que o normal.
  - Não foi uma surra, mas ela bateu no meu rosto. Tive que me segurar pra não revidar. Nós discutimos feio, Lou... E dessa vez não tem volta. – Funguei tentando engolir o choro mais uma vez. – Mas não quero falar sobre isso.
  - Tudo bem, %Tah%. – Ele respeitou o meu silêncio. – Só queria poder te abraçar agora.
  - Shhh, não me faça chorar, seu meloso! – Falei manhosa, sorrindo. – Eu tenho que ir, ok? Minhas malas não vão se arrumar sozinhas. E diga ao Liam que eu mandei ‘oi’.
  - Boa sorte com isso e tente só trazer o necessário. Nada de embalar todos os seus bichinhos de pelúcia. Principalmente aquele que me dá arrepios. Urrrgh. – Gargalhei e ele me acompanhou na risada.
  - Ok, vou tentar. Juro.
  - Então te vejo amanhã, pequena. Se cuide. – Ele se despediu.
  - Te vejo amanhã! Luv ‘ya. – Desliguei o celular com um sorriso bobo nos lábios. Eu o veria no dia seguinte. Em Londres.
  Minha tarde seria longa, então eu não tinha tempo a perder. Saí do quarto em direção ao banheiro, onde tomei um banho demorado. Precisava relaxar e nada como a água quente escorrendo pelo meu corpo. Só saí de lá depois que meus dedos estavam enrugados e escutei o ranger da porta da frente ao se abrir, ou fechar; não consegui identificar isso. Enrolei uma toalha branca no meu corpo e outra nos meus cabelos, em uma espécie de touca. Atravessei o corredor novamente e me tranquei no quarto. Não me dei ao trabalho de descer para ver quem havia chegado em casa, faria isso depois de empacotar pelo menos metade das minhas coisas. Sequei o corpo e vesti um pijama confortável: Um short de algodão azul claro e uma camisa do Nirvana que eu roubara de Louis meses atrás. Apenas penteei os cabelos e os deixei secar naturalmente.
  Não fazia ideia de por onde deveria começar, então tentei organizar os meus pensamentos para então colocar as minhas coisas em ordem. Não tinha certeza do que levar, ou do que deixar pra trás. “Tente só trazer o necessário”, as palavras de Lou não saíam da minha cabeça. O que eu podia fazer se TUDO era necessário? Resolvi partir do começo. Algo que era de fato necessário: Roupas. Joguei a minha maior mala em cima da cama e a deixei aberta. Sem demora, comecei a tirar todas as minhas roupas de uma por uma e a colocá-las arrumadas na mala. Não me importava que ficassem amassadas, o que eu queria era que todas coubessem em um lugar só. Eu nunca tive muitas roupas, mesmo morando na capital da moda, então foi fácil esvaziar o guarda roupa em apenas uma mala. É claro que já deixei a minha roupa para a viagem do dia seguinte separada na mesinha de cabeceira. Coloquei os sapatos – e as minhas sapatilhas de dança – dentro de uma caixa de papelão e também separei o que usaria para viajar. Repeti com as bolsas o mesmo que havia feito com os sapatos. Bem, aquilo era o necessário. Coloquei a mala em um canto do quarto e empilhei uma caixa sobre a outra. Eu logo não teria mais espaço, já que o meu quarto era praticamente um cubículo onde só cabia a minha cama, um guarda roupa e alguns móveis menores. Na verdade, a casa inteira era assim, pequenina. Meus avós nunca foram muito ricos e a casinha em que eles moravam era o suficiente para os dois. Assim que meu irmão e eu nos juntamos a eles, meu pai ofereceu pagar por uma casa maior, mas ninguém aceitou. Então tivemos que dar o nosso jeito da melhor forma possível. O quarto de hóspedes ficou com o meu irmão e o escritório foi transformado em um quarto pra mim. Não posso dizer que era um quarto dos sonhos, mas também não tinha do que reclamar.
  “TOC TOC”. A batida na porta me assustou e logo me pus a abri-la. Meu avô estava parado, me estudando com seus brilhantes olhos azuis escondidos por trás das lentes de seus óculos de leitura.
  - Papa! Entra... Não vi o senhor chegar, acho que eu estava no banho. – Sorri nervosa, quase me enrolando com as palavras. Não queria magoá-lo por ter antecipado a minha partida. Dei espaço para ele entrar e o fitei enquanto passou por mim e viu as malas no canto.
  - Não faz muito tempo que eu cheguei. A caminhada foi revigorante. – Ele seguiu até a minha cama e se sentou, me encarando. Não como se cobrasse uma explicação, apenas tentando entender o que estava acontecendo. – Não é meio cedo para arrumar as suas coisas, querida?
  - Eu adiantei a minha ida, vovô... – Expliquei com calma. Ele não falou nada, apenas me olhou da forma que ele sempre fizera, com compreensão. Balançou a cabeça em afirmativa e eu continuei. – Parto amanhã, no trem da tarde. Já falei com Louis e está tudo certo.
  - Não aguenta mais esperar para visitar a terra da rainha não é mesmo? – Ele sorriu de leve. – Ou quer se livrar do seu velho avô? – Apesar de ser uma brincadeira, senti um toque de melancolia em sua voz. Minha mãe era sua única filha e eles nunca foram muito ligados. Então vovô me tinha como a sua princesinha desde que eu me entendo por gente. Seria difícil dizer adeus, mesmo que eu não estivesse indo para tão longe assim.
  - É claro que não, papa! Só eu sei o quanto vou sentir sua falta e da nana. Mas eu preciso ir... – Minha voz era manhosa, como se estivesse prestes a chorar. Caminhei até ele, mas não me sentei.
  - Eu entendo, minha filha. Seu sonho está lá. E eu tenho certeza que será apenas o primeiro de muitos. – Agradeci por ele ter começado a falar, já que eu não saberia dizer mais nada. – Você vai brilhar, %Star%. Ainda mais. Nunca deixe ninguém te dizer o contrário. Muitos vão querer te deixar pra baixo, muitos não vão ser aquilo que você esperava. Mas não se deixe abalar. Seja a menina forte que eu sei que você é. Acima de tudo, não deixe os problemas mudarem a sua essência. Continue com o coração bom que você tem. E não se esqueça... Você sempre vai ter a sua casa aqui.
  - Ah, vovô... – Não aguentei mais segurar o choro, não depois daquelas palavras que me tocaram tão profundamente. Ele se levantou e me abraçou. Me encolhi em seus braços e chorei como uma garotinha, sem me importar em molhar a sua camisa com as minhas lágrimas. Escondi o rosto em seu pescoço e ele acariciou meus cabelos, assim como fazia quando eu era menor. Perdi as contas de quantas vezes havia chorado em seu colo, especialmente por causa de brigas com a minha mãe. – Eu te amo tanto.
  - E eu amo você, minha menina. – Percebi pela sua respiração que ele também chorava. Não tão desesperadamente quanto eu, mas o suficiente para molhar o seu rosto e embaçar os óculos. – Você já reservou a sua passagem? Eu posso fazer isso por você.
  - Ainda não. Você faria isso? Preciso arrumar mais algumas coisas por aqui... – Desfizemos o abraço e eu funguei, limpando meus olhos. Ele fez o mesmo, aproveitando para passar a barra da camisa nos óculos.
  - Vou ligar para a estação e resolver tudo. – Charles foi até a porta e me deu um último aviso antes de sair: - Sua avó está fazendo o jantar. Não demore muito.

Capítulo II
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