Capítulo Vinte e Cinco
Tempo estimado de leitura: 17 minutos
Fico parada por um momento, analisando o rosto de Nyssara. O quintal, que há segundos parecia apenas parte da casa da minha avó, sustenta um tipo de silêncio ensurdecedor.
Duas vozes, idênticas. Mas de pessoas completamente diferentes.
Era como se eu tivesse que lutar comigo mesma.
Meus dedos agarram o cabo da minha adaga e sinto o couro suado aderir à minha pele. Meu coração batendo fora do tempo.
O ar parecia endurecer à medida que minha mente trabalhava para entender o que estava acontecendo. Cada pequena decisão pesa. Fazendo com que eu matutar suas palavras. Nyssara tinha dito que esteve em meu lugar muitas vezes e que ninguém tinha percebido... Meu estômago embrulha com esse simples pensamento. Uma náusea subindo, e se instalando na boca do meu estômago.
Nyssara conseguiu uma brecha para enganar todo mundo.
Mas como? Lembro do pouco que li. Transmorfos não podiam segurar a forma humana por muito tempo, mas o tempo que ela teve foi o suficiente para passar despercebida. Não tenho como saber quantas vezes ela andou entre meus amigos,
minha família, porém a única coisa que eu tinha certeza era de que precisava dar um fim nisso hoje.
Observo meus amigos tendo suas próprias lutas. E sinto um aperto no peito ao ver %Changbin% sangrando em silêncio, pressionando seu ombro enquanto continuava lutando. O sangue escorrendo em um fio teimoso sob a luz, e ele ainda avança, sempre um passo à frente da própria dor. %Echo% por outro lado parecia seguir adiante como se nada pudesse abalá-la. O corpo dela é uma linha tensa e eficiente, e cada golpe que ela dá parece dizer o quão foda ela é.
Meus olhos pousam em
Nyssara. Mesmo que ela tentasse a todo custo confundir meus amigos, isso não iria acontecer. Eles me conheciam. Conheciam cada golpe... Cada gesto. Ela não iria conseguir feri-los.
— O que você ganha com isso? — Pergunto, tentando confundi-la e ganhar tempo para saber como acabar com a sua transformação.
— Poder? — Nyssara sorri, um sorriso perigoso.
Diabólico. Então eu noto algo diferente. Ela era perfeita demais, mas seu corpo não. Há um atraso na forma como ela se movimenta. Quando ergo minha mão, ela ergue um pouco depois.
Minha tia não consegue seguir todas as minhas características. Muito menos imitar a pulseira que coloco em meu pulso para que meus amigos pudessem identificar quem era a pessoa certa. Ela se acomoda em minha pele como se naquele momento ela fizesse parte de mim. Aquilo não era apenas um objeto dado pelo meu primo. Era a lembrança de uma promessa de fazer a diferença.
— Você pode até tentar, mas essa pulseira não irá diferenciar em nada. — Sua voz, quer dizer, minha voz, parecia destilar veneno. — Seria tão lindo ver os rostos dos seus amigos, o desespero em seus olhos...
Meu estômago revira novamente. Meu corpo inteiro pede para avançar e calar aquela boca que usa a minha forma para conseguir alguma coisa.
— Isso só irá acontecer, se eu permitir. — Minha resposta saiu mais áspera do que eu poderia imaginar.
Ao nosso redor, as sombras pareciam oscilar. O cheiro de sangue estava por toda parte, e eu só esperava que não tivéssemos tantas baixas.
— Tire %Changbin% daqui. — Tudo à minha volta estava um caos. E eu sabia que %Changbin% não aguentaria por muito mais tempo. Vejo a mão dele vacilar por um segundo, a pele em volta do seu ferimento brilhando,
úmida.
— %Faith%... — %Minho% não parecia muito feliz com o meu pedido.
Sinto que minhas palavras são duras. Mas eu precisava que eles estivessem seguros, ou que concentrassem suas forças em outro local. Porém é %Echo% que age primeiro. Minha amiga agarra %Changbin% pelas costas e o arrasta para um outro lugar. O corpo dele resiste por reflexo, mas por fim cede.
Eu também não estava feliz de ver %Minho% lutando.
Ele era um príncipe. Deveria estar em segurança ao lado de Lith e Kaer. Mas, ao olhá-lo, sabia que ele não cederia aos meus pedidos. Sua postura é firme e eu sabia que suas mãos estavam prontas para ferir se precisássemos.
A lua brilhava intensamente acima de nossas cabeças. E sinto a adaga em minhas mãos pulsar com uma força que jamais tinha visto, ou sentido antes. O cabo frio parecia fixar em minhas mãos suadas. Meu coração batendo em ritmos descompensados.
— %Faith%, %Faith%. — Nyssara ergue sua lâmina em minha direção. Ela tinha garras, por que usar uma lâmina? — Eu não me importo com os seus amigos, tudo o que eu quero é acabar com você lentamente.
— Eu não teria tanta certeza assim....
A raiva toma conta do meu corpo. Como chamas. Eu abafo todo e qualquer ruído que pudesse ouvir da batalha que acontecia ao meu redor e a ataco.
Nyssara é a primeira a se mover. Mas desvio rapidamente. Seu corpo se inclina, seu peso passando para o pé de trás tentando me atingir. Mas por um descuido dela, consigo acertar seu ombro esquerdo. Minha adaga a perfurando exatamente onde eu queria.
Minha tia solta um grito, mas logo ela se baixa. Mirando minhas pernas. Fazendo com que meu corpo tremesse com o impacto que recebi. Ela avança sem parar. Um, dois, três chutes, cada movimento sendo uma cópia exata do que eu aprendi na academia com os meus instrutores.
O ar parecia pesar dentro do meu peito. Ao nosso redor, percebo que ganhamos reforços e me sinto mais aliviada em poder focar diretamente nessa luta.
— É engraçado saber que você apenas sobreviveu porque eu permiti. — Eu estava me sentindo furiosa.
— Você está errada... — A pulseira parecia sentir a minha raiva, pois ela pulsava junto da minha marca.
Sinto como se algo estivesse queimando por debaixo da minha pele. Tentando se libertar.
Avanço para cima dela novamente, aproveitando toda a minha fúria. Meus golpes eram sequências, sem deixar ela respirar. Eu suava. O suor escorria pelo meu rosto, queimava nos olhos. Mas eu não podia parar.
Para minha surpresa, minha tia também não hesita. A cada golpe que eu dava, recebia um contragolpe limpo. Mas eu tinha algo que ela não tinha. Eu sentia medo, raiva, desespero. E isso por si só poderia se transformar em uma arma a meu favor. A hesitação me quebra e me salva, ela me faz mudar o ângulo no último instante, porém sou atingida
A lâmina cortou meu uniforme, arrancando um fio de tecido e deixando a minha pele arder. O sangue não apareceu, mas a ardência estava ali.
A fúria tomou conta do meu corpo novamente, fazendo com que eu desse um grito pegando todos desprevenidos. O som não era bonito.
— O que é isso? — Pela primeira vez, vejo Nyssara surpresa com algo.
A marca em meu pulso parecia queimar ainda mais. Mas não causava dor. Pelo contrário. Era algo familiar. Uma lembrança das histórias antigas sussurradas pela minha avó materna.
Ela recua um passo. Ainda surpresa. Mas não baixei minha guarda. Continuo lutando, mesmo com meus músculos reclamando. Era como se o calor que emanava da minha marca fosse um motivador do meu ataque.
Flashes da minha vida como caçadora começam a tomar conta do meu subconsciente. Meu primeiro dia na academia, as palavras duras da minha avó. O peso da promessa que fiz ao me tornar caçadora. A mão de %Changbin% me levantando do chão em um treino qualquer. %Echo% rindo com a boca, mas séria com os olhos.
Cada uma dessas lembranças é uma faísca que me motivava a atacar Nyssara. Ela não teve isso. E nunca terá. Essas eram as minhas lembranças, a minha vida.
Com isso a adaga parece mais leve. Meu braço encontrando uma posição para movê-la sem me machucar.
Mas parecia que ela não desacelerava. Sinto isso em seus ataques. Ela tenta a todo custo acertar meu peito. Mas consigo bloquear bem a tempo da sua lâmina tocar minha pele.
Quando Nyssara conseguiu me agarrar. %Minho% dá um passo em minha direção. Pronto para intervir.
— Não! — Grito, sem olhar para ele. Era como se minha voz tivesse mudado. — Essa luta é minha.
Ele faz exatamente o que peço e recua. O ar atrás de mim se alivia e, ao mesmo tempo, pesa com responsabilidade.
Minha raiva está se elevando a outro patamar. Nyssara sussurra em ouvido.
—
Eu te avisei. — Sua lâmina raspando contra minha pele como se ela gostasse desse jogo.
Eu não recuo. Meus calcanhares fincam como se houvesse no chão. A respiração desce acelerada.
Ela ainda era eu. Mas eu sabia que isso estava prestes a ter um fim.
— Você nunca irá conseguir ter poder. — Minha voz sai mais firme. — Hoje, a Ordem irá cair e você cairá junto dela.
A marca no meu pulso vibrou em resposta, e dessa vez não apenas como dor. Sinto o calor subir pelo braço, atravessar o ombro, até chegar ao meu peito. O mundo pareceu girar em chamas. Enquanto um clarão atravessa minha visão, fazendo com que Nyssara vacilasse por um instante.
Avanço sobre ela mais uma vez depois de conseguir me soltar. Dessa vez a adaga em minhas mãos parecia o sopro de um verão.
Minha adaga estava faiscando, como se ela tivesse sido forjada em fogo. Faíscas saltam do encontro das lâminas e morrem no ar antes de tocar a grama.
Percebo de canto de olho que os transmorfos recuaram um passo.
O reflexo dela vacilando.
— O que você está fazendo? — Pela primeira vez vejo pânico em seu olhar.
Eu sentia o fogo crescendo, queimando. Era como se cada lembrança, cada dor, cada promessa tivesse virado combustível. A raiva não me consumia mais. Ela me moldava.
— Você pode até conseguir copiar minha fisionomia. — Falo, ofegante. — Mas nunca irá conseguir copiar a minha determinação.
Avanço outra vez. A adaga desce em diagonal, e quando ela bloqueou, o fogo estourou entre nós. O clarão iluminou o quintal inteiro, os rostos dos meus amigos brilhando por um instante.
Tudo parecia girar ao meu redor.
— Não… — ela arfou, a respiração falhando. — Isso não pode ser.
A marca ardia como se tivesse sido gravada a ferro. Eu não resisti. Pela primeira vez, não tentei conter o que poderia acontecer. Deixei que a chama tomasse o meu corpo. O calor atravessou minha pele, e subiu pela lâmina, iluminando a noite.
Eu não sabia muito bem o que estava acontecendo, até ver a dimensão das coisas ao meu redor. O chão parece tremer sob os meus pés, a sombra dos meus dedos na adaga dançando com vida própria, e há um som baixo, contínuo, de coisa acesa.
Nyssara avança até mim de novo, desesperada, tentando me acertar, sempre mirando em meu pescoço. Eu desvio. A adaga que %Felix% me deu atingindo a lateral de seu corpo novamente, e eu entendo o que eu deveria fazer.
O grito agudo que sai de sua garganta não era o meu. Pelo contrário. Era a verdadeira forma de Nyssara.
— Isso é por tudo o que você fez. — Meus movimentos são ainda mais rápidos, fazendo com que o fogo se alastrasse não apenas até onde Nyssara estava, mas também até os transmorfos fazendo eles recuarem.
— Você não entende! — Ela parecia enfraquecer cada vez mais. — Nós somos uma família...
Eu não me importo com o que éramos. Permito que o calor atravesse meu corpo novamente.
— Você nunca deveria ter me subestimado. — A encarei profundamente em seus olhos.
O fogo está se expandindo cada vez mais.
— Você não pode apagar o sangue que carrega, %Faith%. — Ouço sua voz. Nossas armas colidem.
Eu precisava aproveitar a sua fraqueza. Por isso invisto mais uma vez.
Minha adaga cravando em seu peito. O fogo tomando conta de seu corpo.
Nyssara grita. Um grito assustador.
Mas tudo o que eu sinto é alívio.
Continuo em pé. Arfando enquanto sinto as chamas diminuindo lentamente à medida que Nyssara some.
A lua de sangue ainda pairava sobre nós, mas a sua cor já não era tão cruel. O ar cheirava a sangue e terra molhada. Sinto meus joelhos cederem. Caio, apoiando uma das mãos no chão frio. Meu ombro latejava, meus músculos queimavam e a adaga parecia pesar como pedra em minha mão. Respiro fundo, tentando não sucumbir ao próprio peso do meu corpo.
Os braços de %Changbin% me rodeiam antes mesmo de algo acontecer. Ele me segura, mesmo ferido, com a mesma firmeza de sempre.
— Acho que acabou... — Ele sussurra.
Observo os poucos transmorfos que continuaram vivos sendo capturados.
Acho que a surpresa de ver outros caçadores ali, ajudando a acabar com os transmorfos foi maior do que palavras.
%Echo% lutava no limite da força, mas agora tinha ajuda. O mesmo acontecia com %Seungmin%, que recuava um passo atrás de outro caçador. Eles tinham chegado em silêncio, entrado na batalha sem que eu percebesse,
Por um instante, pensei em questionar. Mas ignoro.
Eu me levanto, ainda apoiada no braço de %Changbin%. Minha marca queimava suave, mas firme, como lembrança de que estava viva.
Olhei para a lua pela última vez.
— A Ordem nunca deveria ter se perdido. — Minha voz saiu baixa, mas clara. — Nunca deveria ter deixado de proteger os outros.
As palavras não eram apenas para mim. Eram para todos que ainda estavam ali. Dei um passo à frente, sentindo a adaga ainda quente na mão. Os caçadores que tinham chegado me observaram por um instante, como se esperassem algo. Talvez uma ordem, talvez um reconhecimento.
— Ela será restaurada. — Completei, e a certeza encheu meu peito como o fogo que ainda ardia. — Porque não somos feitos apenas de sangue. Somos feitos de escolhas. Aqueles que não concordam, estarão livres para ir. E aqueles que estiveram lutando ao nosso lado, estarão livres para ficar.
O quintal estava em silêncio outra vez, mas não era mais o silêncio de morte. Era um silêncio de algo novo começando.
E, pela primeira vez em muito tempo, eu senti que não estava sozinha.
N/a: Hello! Hello! Eu sei que falei que o próximo capítulo, no caso esse, seria o final. Mas... Coisas acontecem quando escrevemos haha. Ou seja, temos mais um capítulo e um epílogo que já estão prontos. Estou tentando revisar eles para mandar até no máximo no fim de outubro.
Beijos.
Nath.