Capítulo vinte e dois
Tempo estimado de leitura: 20 minutos
O carro estaria em um completo silêncio se não fosse pelo barulho do motor. No entanto, ele não era suficiente para me fazer esquecer a dor latejante que queimava minhas costas, era como se cada curva que %Changbin% fazia naquela estrada sinuosa fosse uma faca cutucando ainda mais a minha ferida.
Eu queria manter minha postura, porém, por mais que eu tentasse, não havia modo de eu aguentar por muito tempo. Tento não encostar no banco do carro, pois eu sabia que iria encharcá-lo de sangue, e seria muito mais desconfortável, mas as pontadas de dor ainda estavam ali, me lembrando uma das regras mais importantes do mundo dos caçadores e que eu esqueci em um momento de pânico:
“nunca dar as costas ao inimigo”. O suor frio que escorria pela minha testa, se acumulava cada vez mais no meu pescoço. E foi ali que eu soube que a qualquer momento eu poderia começar a delirar, pois aos poucos meu corpo parecia começar a deixar de ser meu.
Eu jamais iria ceder a essa sensação e é por isso que me agarro naquele único fio de sanidade que eu ainda tinha.
O orgulho de uma caçadora. Eu parecia tão principiante, que tinha vergonha só de pensar no que as pessoas que me conheciam iriam falar sobre as minhas rateadas como caçadora. Era como se a raiva e culpa por tudo o que estava acontecendo estivesse esperando o momento certo para aparecer. E esse tinha sido o momento.
Meu corpo estava fragilizado não apenas por essa ferida recente, como por todas as outras que surgiram no decorrer dessa investigação. E isso me remetia ao passado, aos treinamentos pesados, às missões que deram errado... Fazendo com que essas emoções finalmente rompem as paredes do meu coração que eu vinha reforçando ao longo dos anos.
— Como você está? — Meus olhos se conectam com o de %Changbin%.
— Lidando... — Sinto um pouco de dificuldade ao falar, afinal respirar estava um sendo pouco difícil.
Tento compreender as dores que estava sentindo, até porque não tínhamos conhecimento amplo sobre um
Eidak, por isso eu não fazia ideia do que uma ferida causada por ele poderia fazer com meu corpo humano. O que significava que por não saber muito sobre ele, eu estava lascada, ainda mais se o
Eidak tivesse algum tipo de toxina. Decido ignorar essa voz na minha mente e mantenho a calma, o que estava sendo um pouco difícil, mas tento.
— %Faith%… — a voz de %Hyunjin% quebra a barreira que eu tinha criado para enganar a dor. — O cristal que %Felix% entregou para a gente quando saímos do mundo dele não para de brilhar.
— O que isso significa? — %Changbin% pergunta, ainda mais tenso.
— Isso quer dizer que a quantidade de seres sobrenaturais na cidade aumentou. — Sussurrei.
— Merda! — O observo socando o volante. — Se sairmos vivos daqui, eu irei me aposentar.
— Sei que nosso código de conduta diz para terminarmos esse caso, mas realmente vale a pena? — %Hyunjin% me encara um pouco sem graça.
— Eu sei que esse caso é difícil, mas não acho justo a gente largar de mão quando estamos tão perto do fim.
A neblina parecia se intensificar ainda mais à medida que avançávamos com o carro e observei %Changbin% diminuindo a velocidade, a estrada parecendo desaparecer bem diante dos nossos olhos.
— O que…? — Os meninos resmungam e eu começo a prestar mais atenção no que acontecia ao nosso redor.
Meu coração dispara rapidamente. Éramos os únicos na estrada, mas parecia que alguma coisa estava errada, fora dos padrões, começando pela névoa espessa que tomou dimensões inimagináveis.
— Isso não é bom. — Murmuro enquanto tento lutar com a minha própria dor. De repente fico mais alerta, meus olhos vasculhando qualquer indício de problemas.
— Parece que estamos andando em círculos. — Concordo silenciosamente com a descoberta de %Changbin%.
Meu olhar fica ainda mais crítico, e começo a ver árvores distorcidas e sombras tão densas que eu balanço minha cabeça para tentar voltar à realidade. E por um momento me pergunto se seríamos capazes de chegar em casa.
— Isso não está legal… — %Hyunjin% me olha.
— Gente… — De repente, como se tudo fizesse sentido, minha mente desperta.
Se eu parasse para pensar, tudo começou a ser mais intenso desde que cheguei na cidade. Primeiro, a morte do diretor, depois foi o ataque na floresta e a ferida na minha barriga, após isso os frequentes ataques a mim e aos meus amigos, como foi o caso em que Han e eu estávamos procurando pelos anuários.
— %Faith%? — %Changbin% chamou minha atenção.
— E se os transmorfos estiverem ligados de alguma jeito à Ordem? — Revelo meus pensamentos.
— Parando para pensar, até que faz sentido. — %Hyunjin% murmura. — Você acha que sua avó saberia alguma coisa sobre o passado da Ordem? — Ele me pergunta
— Minha avó materna ou paterna?
— Vocês estão entendendo que se isso for verdade, por anos eles tiveram acesso às nossas informações? — Eu e %Changbin% trocamos olhares silenciosos, pois sabíamos o peso dessa pergunta.
— Precisamos correr. — A voz de %Hyunjin% parecia distante.
— Isso foi o cristal? — Pergunto, assustada.
— Sim… — %Hyunjin% parecia surpreso enquanto segurava o cristal que %Felix% tinha nos dado. — Ele trincou.
— Então eles sabem onde estamos. — %Changbin% pisa mais no acelerador, porém parecia que o carro não saia do lugar.
A névoa parecia ainda mais intensa, e era possível ouvir o som de trovões nos seguindo.
— Como que o cristal rachou? — Percebo meus amigos se olhando no banco da frente.
— Isso é a energia, alguma coisa mudou hoje. — %Hyunjin% me respondeu. Olhei para a janela, e com isso acabei percebendo um padrão.
— Saímos da rota. — Me mexo um pouco no banco.
— Sim, acabamos de passar por aqui. — %Changbin% resmunga. — Consegue fazer alguma coisa, %Hyunjin%?
— Estamos em uma ilusão. — Ele fala. Isso responde muito ao porquê do cristal ter reagido.
— Você acha que isso pode ser coisa do
Eidak? — Fico levemente apreensiva.
O carro dá um tranco de repente, e é possível ver um vulto passando na frente do carro.
Eu fico paralisada, a dor irradiando pelo meu corpo novamente.
— Não quero assustar vocês, mas sinto que meu corpo está paralisando aos poucos. — Tento não deixar meu medo transparecer em minha voz.
— Temos que sair desse loop, não sabemos o que uma ferida do
Eidak pode causar. — Balançominha cabeça em concordância.
— Vou tentar sair daqui o mais rápido possível. — Observo meus amigos tomando a frente novamente. — Vai dar certo.
Mais à frente era possível ver uma estrada mais aberta, e por um momento parecia que estávamos prestes a chegar na casa da minha avó, mas eu tinha medo de que tudo isso fosse apenas parte de uma ilusão.
— %Changbin%! — %Hyunjin% dá um grito que me assusta. — Vai! Vai!
Um vulto branco para no meio da estrada, era possível ver ele tomando uma forma diferente, porém meu amigo é mais rápido e não esperar para ver no que aquilo iria se tornar, pois ele pisa no acelerador fazendo com que batermos no vulto e voltássemos para a estrada real.
— O que era aquilo? — Perguntei depois de me recompor.
— Não importa, temos que ir. — %Hyunjin% grita.
Seja lá o que tenha ficado para trás, a coisa não nos seguiu. Por um momento achei que tivesse sido uma alucinação, algo criado pelo meu delírio, o que não era o caso, afinal, meus amigos tinham visto também.
— Chegamos… — A voz de %Changbin% parecia aliviada e %Hyunjin% ao seu lado abre a porta do carro rapidamente assim que o mesmo para.
— Vamos, %Faith%. Sua avó irá cuidar da sua ferida. — Sinto que de certa forma %Hyunjin% se culpava por não poder fazer mais por mim ou por %Changbin%, mas eu sabia que sua energia tinha sido completamente drenada ao tirar a gente do arquivo abrindo aquele portal. Eu podia sentir um alívio instantâneo por finalmente estar em um lugar seguro.
%Changbin% e eu nos apoiamos um no outro enquanto %Hyunjin% tentava fazer um malabarismo para nos ajudar e ao mesmo tempo carregar alguns documentos que tínhamos pego do arquivo. E por um milagre, a porta se abriu antes mesmo que pensássemos em abrir a porta.
Minha avó paterna estava lá, parada, nos esperando.
Eu nunca tinha notado, mas parecia que seus cabelos tinham ficado ainda mais brancos na última semana. Seus olhos castanhos escuros nos encaravam com julgamento.
— Entrem. — Ela fala baixo, talvez os outros estivessem dormindo e eu não queria acordá-los.
Ao entrar na casa sou tomada por um cheiro forte de ervas que vinham da cozinha. Era quase como se ela soubesse que estávamos em apuros e que iríamos precisar dela assim que chegássemos em casa. Pacientemente, minha avó leva a gente para um quarto, e olho um pouco preocupada para os meus amigos. %Changbin% estava ferido, e %Hyunjin% estava esgotado, eles também precisavam de ajuda.
Me sento na cama com um pouco de dificuldade. %Changbin% tinha se acomodado do outro lado da cama, exausto.
— Não sei o que se passa na cabeça de vocês. — %Hyunjin% fica calado o tempo todo em que ouvimos minha avó resmungar. — Você. — Ela aponta para ele. — Tenho um chá em cima da mesa que irá ajudá-lo a recuperar sua energia mágica. — Em poucas palavras vovó dispensa ele do quarto. — Irei cuidar de você primeiro, depois irei cuidar do seu amigo. — Sorriu ao vê-la apontando para um %Changbin% completamente desmaiado ao meu lado.
— Como minha mãe está? Acha que isso é venenoso? — Bombardeio minha avó com perguntas.
— Cora está com ela, não deixou ninguém se aproximar. — Cora, era tão estranho escutar o nome real da minha avó materna, afinal, ela sempre foi
diretora para mim. — Vire-se, preciso cuidar da sua ferida.
— Sobre a ferida, como você sabia, vovó? — Pergunto.
— Sou uma banshee, e sua tia consegue prever o futuro muito bem. — Ela solta uma risadinha e automaticamente lembro da minha tia-avó.
— Eu sempre subestimo vocês. — Fecho meus olhos quando sinto uma pontada nas minhas costas.
— Fique paradinha, %Faith%. Isso irá arder um pouco. — Prendo minha respiração ao ver um potinho de barro que minha avó estava segurando.
O líquido era marrom e tinha um cheiro muito forte de algo que eu não conseguia decifrar. Assim que o remédio tocou minha pele, parecia que o mundo estava pegando fogo.
A dor e o alívio dão as mãos por um momento. Se meu corpo precisasse sofrer para eu me curar, então iria fazer isso sem nenhuma reclamação.
— Você está indo muito bem. — Vovó murmura. — Daqui a pouco você irá poder descansar, assim como seus amigos.
Eu não sabia se poderia concordar completamente com as palavras da minha avó, mas de repente sinto um sono tomando conta de mim.
— Não posso dormir. — Em partes eu queria analisar os documentos que tiramos da Ordem, mas de certo modo eu sabia que para combater o inimigo, eu deveria estar descansada.
— %Faith%, durma. — A voz da minha avó era autoritária, ela me deita na cama da forma mais aconchegante possível. — Seus outros amigos irão me ajudar a analisar as coisas enquanto vocês descansam. — Isso é a última coisa que escuto antes de apagar por completo.
Acordei com uma sensação estranha. Parecia que alguma coisa estava errada. Sinto uma dor incômoda nas minhas costas, mas não era mais como a queimação de antes. O cheiro de ervas ainda estava presente no quarto que eu estava, me fazendo pensar que minha avó as tinha deixado ali para que pudéssemos dormir direito. Me sentei com um pouco de dificuldade e fico aliviada ao ver %Changbin% ao meu lado respirando, apesar da sua pele está um pouco pálida e seus lábios rachados.
Fico um pouco alerta quando escuto a porta do quarto se abrindo devagar, mas rapidamente relaxei ao ver minha avó entrando no quarto com uma bandeja em mãos.
— Precisamos conversar, querida. — Sinto um pouco de urgência em sua voz.
— Aconteceu alguma coisa com %Hyunjin%? — Tento me levantar, mas minha avó nega e pede que eu continue sentada. — O que foi? Minha mãe?
— Não se preocupe com isso. — A encarei com desconfiança. — Fiz um chá para você, acho que irá precisar.
Peguei a xícara de sua mão e continuei a observando. Eu nunca tinha visto minha avó desse jeito antes. Por isso bebo o chá o mais rápido possível para descobrir o que ela queria falar comigo.
— Acho que podemos conversar agora. — Entrego a xícara para ela.
— Isso daqui estava nos documentos que vocês trouxeram… — Pego um envelope de suas mãos.
— O que é isso? — Perguntei.
— Abra e irei explicar. — O envelope estava amarelado, quase se desfazendo em minhas mãos por conta do tempo.
— Vovó, você acha que eu iria me assustar com um envelopinho? — Mantenho minha voz baixa para não acordar %Changbin%.
— Talvez sim… Pois isso explica muitas coisas. — Prendo minha respiração e faço exatamente o que ela pede. Abro o envelope.
Com todo o cuidado do mundo, tiro uma foto antiga e desgastada de lá. A foto, assim como o envelope, estava amarelada, mas nela era possível ver uma mulher de aproximadamente vinte anos com um bebê no colo e uma criança mais abaixo dela na foto.
— É uma foto. — Não entendo muito bem sobre como essa foto explicaria as coisas que estavam acontecendo.
— Olhe bem, querida. — Tento puxar na minha memória qualquer pessoa relacionada com essas três pessoas na imagem, e arregalo meus olhos quando finalmente entendo quem estava ali.
— Essa daqui é a minha avó materna? — Perguntei incrédula enquanto aproximava a foto para mais perto dos meus olhos.
— Sim… E o bebê que está no colo dela é sua tia. — Sinto um arrepio no meu corpo.
— Como assim? Minha avó... Teve outro filho antes da minha mãe? — A questiono. — Como nunca soube sobre isso?
— Porque ninguém sabia. — A ouço suspirar. — Aparentemente sua avó apagou tudo que pudesse conectá-la a uma filha fora do casamento.
— Aí que está, minha avó não seria burra em deixar qualquer coisa relacionada a uma filha fora do casamento. — Minha mente começa a trabalhar, tentando conectar qualquer coisa que pudesse indicar uma tia que eu não sabia da existência.
— É porque existem coisas que não são apagadas propositalmente. — Ela segura minha mãe. — Eu confirmei sobre a identidade da sua avó com uma ajudinha de %Hyunjin%…
— O que isso quer dizer? — Pergunto.
— Ela manipulou todo mundo. — Sinto o ambiente esquentando e de repente parece que me falta ar. — Sua avó, antes de entrar na Ordem, antes de se casar com seu avô, vivia em uma cidade pequena, ela já era caçadora, então se apaixonou e se casou, no entanto…
— O que aconteceu? — Minha voz se eleva um pouco.
— Ela descobriu que o marido era um transmorfo. — Sinto como se o mundo estivesse se abrindo aos meus pés, pois eu já imaginava onde minha avó chegaria com essa informação. — Sua avó materna mandou matar o marido e a filha. — Fecho meus olhos.
— E quem não morreu? — Engulo em seco.
— Sua tia… — Rapidamente as peças que faltavam se juntam.
— O ataque que meus pais fizeram naquele vilarejo tinha algo a ver com ela? — Fecho minhas mãos em punho, tentando inutilmente me acalmar.
— Sim… Sua avó mandou a própria filha para matar a filha mais velha. — Essa notícia apenas mostrou do que minha avó era capaz.
— Meus pais foram até lá juntos de outros caçadores com um pretexto, e no fim muitas vidas foram ceifadas porque minha avó não queria que descobrissem uma filha… — Lágrimas escorrem dos meus olhos.
— Não só isso. Ela queria evitar uma possível retaliação.
— Por isso as mortes… Muitos estavam ligados à Ordem, mas isso não explica um lobo ter morrido. — Tento conectar uma morte à outra, mas mesmo assim não fazia sentido. Uma coisa era uma retaliação aos caçadores que tiraram a vida de tantos, outra era matar uma inocente.
— Existem coisas que você não sabe sobre o submundo e sobre a Ordem. — Minha avó sorri.
— E o que eu não saberia?
— Antes do seu avô morrer, a Ordem era uma só. — Semicerrei meus olhos. — Ela era uma Ordem formada por caçadores, lobos, vampiros, bruxos, fadas… Era lindo. No entanto, quando seu avô morreu e sua avó assumiu a liderança, todos foram caçados, mortos…
— Mesmo assim, por que um transmorfo iria atrás de um lobo? — Perguntei.
— Para criar o caos no seu grupo. — Arregalo meus olhos.
— Você quer dizer que isso foi uma morte proposital?
— Sabemos que é a minha tia por trás disso tudo? — Eu precisava de confirmações.
— Nunca foi descoberto se sua tia morreu ou não no ataque que seus pais fizeram anos atrás, porém, é alguém motivado contra a sua família materna.
— Então isso quer dizer que eu sou um alvo. — Falo com determinação.