You Are Too Beautiful

Escrito por Letícia Leite | Revisado por Natashia Kitamura

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Parte do Projeto Songfics - 14ª Temporada // Música: Too Beautiful, por He Is We

~Se quiser pode ler escutando a música Too Beautiful – He is We~

   se encolheu no fundo do closet apertado, mordeu o lábio inferior para não fazer barulho enquanto suas lágrimas escorriam pelo rosto marcado. Já passara da meia noite e ela não queria que seu filho ouvisse mais do que já havia escutado mais cedo, era demais para qualquer um, ainda mais para uma criança.
  Ele havia saído depois de mais uma sessão de humilhação, que agora era quase diária. “Não esqueça de passar maquiagem antes de sair amanhã, anjo” – Ela se arrepiou só de lembrar da voz dele, mas não era o tipo de arrepio bom seguido por um friozinho na barriga que a havia feito perceber que estava completamente apaixonada por ele. Era medo. Mais que medo, era horror, era um misto de nojo e arrependimento. Era difícil acreditar que aquele que um dia fora tão amoroso agora se tornara um monstro.
  Que tipo de homem bate na mulher que ama, a chama de ‘anjo’ e não demonstra nenhum remorso?
  Ele podia até não sentir remorso, mas sentia. Sentiu remorso de ter abandonado a faculdade que tanto almejara para casar-se com o homem que lhe prometeu o mundo. Não se podia tirar totalmente o credito de , afinal, ele havia lhe dado o mundo, nem que fosse por um minuto, mas então ele arrancou dela sem piedade.
  Ouviu um barulho do lado de fora de seu esconderijo e sentiu todos os seus músculos se enrijecerem. Será que já era de manhã? Quanto tempo ela havia passado ali? A porta de correr do closet foi aberta lentamente, por um segundo não reconheceu a silhueta, pois a luz forte que vinha do quarto somada com as lágrimas em seu rosto não colaboraram, mas logo em seguida reconheceu seu filho.
  - Está tudo bem, mamãe? – A voz do garotinho cortou o coração da pobre mulher, ele estava tão assustado quanto ela.
  - Venha cá – Ela esticou os braços em direção ao garoto que correu para se aninhar junto da mãe – Vai ficar tudo bem – A voz dela não passava de um sussurro, mas o pequeno escutara – Eu vou dar um jeito nisso, nós vamos sair dessa – O menino apertou mais o corpo contra o da mãe, que mesmo sentindo dor, não reclamou, era quase uma dor boa, comparada ao que ela sentira poucas horas atrás.
  Ficaram muito tempo abraçados, até a mulher sentir o aperto do menino diminuir um pouco e sua respiração ficar mais lenta e pesada. Com certa dificuldade, pegou-o no colo e o levou até seu quarto. Deitou-se na cama pequena do menino junto dele e assim, caiu no sono.

  - Por que ainda não fez o café? – Foi o que ouviu assim que entrou pela porta da cozinha aquela manhã. estava com a roupa para ir ao trabalho e esperava impacientemente de braços cruzados pelo café da manhã. Afinal, para que servia uma esposa se não para lhe preparar as refeições e arrumar a casa?
  - Eu acabei de acordar – Ela falou baixinho.
  - O quê? – O homem perguntou rudemente enquanto colocava uma mão no ouvido – Não consigo ouvir, fale mais alto! Qual o seu problema? – “Você” ela quis responder, mas preferiu baixar a cabeça e não fazer nada que ele considerasse como um desafio – Ficou muda? Não apanhou o suficiente ontem? – Ela estremeceu o fazendo sorrir, havia provocado o efeito que ele queria – Faça logo a droga desse café que eu estou atrasado, sabe, minha cabeça está doendo muito...- Ele começou a tagarelar – Não deveria ter bebido tanto ontem à noite, pelo menos minha companhia fez mais comigo em uma noite que você em nossa vida inteira...
  - Basta – falou batendo com as duas mãos na bancada da cozinha e segurando as lágrimas, ele já não a havia humilhado o suficiente ontem?
  - O que disse? – Ela ouviu a cadeira sendo arrastada contra o piso gasto da cozinha.
  - Eu disse que já chega – não sabia de onde havia criado coragem, mas virou-se para ele e apontou o dedo em sua direção. Talvez ela houvesse chegado a seu limite – Quer café? Faça você mesmo, seu inúti... – Ela não conseguiu completar a palavra, pois já estava no chão.
  - Isso – ele falou torcendo sem piedade o dedo indicador da mulher, fazendo-a gritar. – É para você aprender a não me responder. , VAI PARA O CARRO, SE NÃO VAI CHEGAR ATRASADO – ele falou mais alto se distanciando da mulher como se nada houvesse acontecido.

  - O que houve com você? – O médico perguntou pelo que parecia ser a décima vez.
  - Nada, eu só torci o dedo – falou de cabeça baixa – Pode consertar? Eu tenho muito o que fazer em casa...
  - E esse olho roxo? – Dr. se inclinou sobre a mesa cheia de papeis e encarou a mulher que olhava para todos os lados do consultório, menos para ele –?
  - ... – Ela sentiu uma lágrima escorrer – Por favor...
  - Ah, quanto tempo nos conhecemos, ? – Ele falou se levantando de sua cadeira e dando a volta em sua mesa para encarar a mulher de perto.
  - Muito tempo – Ela falou depois de alguns segundos – ... – Ela repetiu o nome do amigo quando ele passou a mão carinhosamente sobre o rosto marcado dela.
  - Eu quero você e o longe daquela casa. Hoje – Ele baixou-se para ficar da altura da mulher que agora chorava. pegou o dedo torcido de e começou a enfaixar delicadamente. – Ele enche seu corpo de hematomas e cicatrizes...
  - Pare... – Ela tentou dizer mas tudo que saiu foi um soluço.
  - Você não entendo o quão bonita você é... Você é tão linda, , não merece isso – Ela não respondeu, e agora encarava seu médico, ex-colega de faculdade e único amigo, que agora já havia acabado seu trabalho e a encarava intensamente – Esses tons de azul no seu rosto que escondem o sorriso que bate em seu peito... Essas marcas não deveriam estar ai, você não está nada parecida com a mulher forte e inteligente que eu conheci. Mas eu sei que ela ainda está ai dentro – Ele apontou para ela – Eu vou te tirar daquela casa, hoje!
  - , eu não acho que seja...
  - Nem ouse terminar essa frase – deu um sorriso mínimo e assentiu concordando.
  - Que horas ele chega? – se recusava a falar o nome daquele que fazia tão mal a uma pessoa tão querida. A maior vontade dele era denunciá-lo, mas não podia fazer isso sem para confirmar.
  - Às sete.
  - Estarei na sua casa às cinco em ponto. Passamos na escola do e então iremos a minha casa, depois a delegacia... Nem adianta fazer essa cara! – desfez a careta que tomou o seu rosto quando ela escutou a palavra ‘delegacia’ e sorriu levemente de novo.
  - Obrigada – Foi tudo que ela sentiu que poderia dizer sem ir as lágrimas novamente.

  Ela abriu a porta da sala lentamente, só de pensar que não precisaria mais voltar naquele lugar seu estomago revirava de medo, ansiedade e felicidade. Era possível sentir tudo isso ao mesmo tempo?
   sempre desconfiara, mas hoje tivera a confirmação dos abusos que sua amiga sofria e aceitou entrar na luta, afinal, ela era forte, não era? Podia enfrentar isso, tinha certeza que teria suporte de seus pais, de seu filho e agora de seu amigo. Não precisava de mais nada.
  - ? – A mulher que estava prestes a pendurar a sua bolsa no cabideiro junto a porta, sentiu um frio desconfortável subir pelo seu corpo, chegando a ponta de seus dedos, agora trêmulos, deixando a sua bolsa cai – , é você? – Ela deixou o casaco e a bolsa no chão mesmo e se dirigiu pelo hall em direção a sala de estar, onde a esperava sentado no sofá, olhando desgostoso para um buquê de rosas brancas que agora jaziam espalhadas pelo chão.
  Ela ficou parada a porta, esperando ele dizer algo. A sua cabeça estava apoiada nas mãos, em um gesto frustrado. O silêncio prevaleceu por segundos que pareceram anos, a tensão no ar era palpável, mas permaneceu firme. Não sabia que o seu marido voltaria cedo do trabalho, então seu plano de sair escondida fora por água abaixo... Talvez conseguisse ligar para e fazer ele desistir da ideia.
  - Onde esteve? – A voz de preencheu o cômodo, mas ele só recebeu um silencio sepulcral como resposta – Não me faça perguntar de novo, . ONDE. VOCÊ. ESTEVE? – O aumento repentino do tom de voz do homem fez dar um pulo para trás com o susto, ela colocou a mão machucada sobre o peito.
  - Fui ao médico – Como se dissesse as palavras mágicas, se levantou e partiu para cima da mulher, a pressionando contra a parede do hall e deixando seu rosto a centímetros do dela.
  - Sabia que eu saí mais cedo do trabalho para lhe trazer flores? – Seu tom de voz delicado não combinava com a força que ele aplicava na mulher - Esteve com ele? – fechou os olhos com força para não encarar o homem a sua frente, fazendo seu olho roxo latejar – NÃO ESTEVE? – O primeiro tapa veio de repente. Mas permaneceu firme – ESTEVE COM AQUELE MÉDICO VIADINHO, NÃO FOI? – Mais um tapa, e outro, e outro – ACHA QUE PODE ME TRAIR COM ELE? ME REPONDE VAGABUNDA, O MÉDICOZINHO COMEU SUA LÍNGUA? – pegou com força o braço de a desencostando da parede, mas logo em seguida a jogou de novo com força contra ela – DEVERIA TER FICADO COM ELE, NÃO É? – Ainda segurando no braço dela, ele a jogou no chão – APOSTO QUE VOCÊ PENSA QUE ELE TE TRATARIA MELHOR – Um chute nas costelas, outro na coxa – MAS TODOS SOMOS IGUAIS, , E VOCÊ É SÓ MAIS UMA VADIAZINHA - Enxugando o suor do rosto, ele gritava por cima do choro dela – VOCÊ NÃO SABE PELO QUE EU PASSEI! VOCÊ NÃO SABE O QUE EU FIZ POR VOCÊ! – Outro chute, um soco - O QUE EU FAÇO TODO DIA POR ESSA FAMÍLIA! – Ele cobre o corpo dela com hematomas e cicatrizes, e por trás do choro, tudo que ela conseguia lembrar era de dizendo “Você não entende a quão bonita você é”. Aposto que ele não me acharia bonita agora, ela pensou enquanto caia na inconsciência mais uma vez, depois de ter sua cabeça batida contra o chão.

  Quinze para as cinco. Fazia meia hora que ela havia acordado, e nada estava arrumado para partir. Era isso que ela queria? Não, era isso que ela precisava fazer. Olhou pela janela e ainda nenhum sinal de , será que ele havia esquecido? Não! Ainda havia tempo.
  Colocou algumas poucas roupas suas e de dentro de uma mochila velha do mesmo e pendurou no ombro. , como sempre, havia saído, provavelmente para beber, após mais uma sessão de tortura.
  Ela está na frente do espelho, parece menos viva. Cinco e dez. levantou a sua blusa devagar sem desgrudar os olhos de sua imagem no espelho. Ela viu cinco marcas de dedo ali, pareceu sentir tudo de novo, como se estivesse apanhando novamente, mas ela não chorou. Ela não chorou. Ela se sentiu mais forte, agora estava determinada, mais que uma necessidade, agora ela queria sair dessa situação. Cinco e vinte. não viria mais? Então ela iria sozinha.
  Ao sair de casa a passos rápidos e assustados, olhando para os lados, um carro parou ao seu lado.
  - Desculpe o atraso – A voz a fez pular de susto antes dela a reconhecer – ? – saiu do carro e a abraçou delicadamente – Vamos para a polícia. HOJE! AGORA! – Ela só assentiu e entrou no banco de carona, recusando delicadamente as tentativas de de puxar assunto. O homem estava possesso por dentro, queria ele mesmo voltar naquela casa e acabar com a raça daquele ‘ser humano’ que tinha coragem de fazer isso com uma pessoa tão boa e gentil quanto a mulher do seu lado. Mas não podia fazer isso, ele tinha de se controlar.

  - Mamãe? – perguntou ao entrar no carro – Por que o tio veio me buscar hoje? Vamos sair? Por que minha mochila velha está aqui? – Crianças e suas intermináveis perguntas...
  - Vamos passar a noite com o tio hoje – riu quando o pequeno comemorou a notícia, seguida de um “PIZZA NO JANTAR!” – gritado animadamente por . Há quanto tempo ela não ria de verdade como naquele momento?
   deixou com uma vizinha de confiança e seguiu para a delegacia com .
  - Eu nem vou lhe perguntar se você tem certeza se quer fazer isso, porque agora já estamos aqui e você vai registrar a ocorrência nem que eu tenha que lhe arrastar lá para dentro – assentiu determinada a fazer o que já deveria ter feito a anos. Ela era jovem, bonita e inteligente... E mesmo se não fosse! NINGUÉM merecia viver como ela vivia, sofrendo ameaças físicas e psicologias, sob constante tensão. Com medo de sair, medo de viver, medo de ser ela mesma.
  Assinado aqueles papeis, soube que era o correto a se fazer. Faria o que fosse necessário para que aquela situação se ajeitasse. Por ela e por seu filho.
   não sabia que levariam anos para conseguir fazer isso. Entre reconciliações mal sucedidas, mais violência, ameaças, perda de guarda de , um amor surgiu. agora estava sempre a seu lado, e depois de dois anos finalmente ela viu que sua vida era ao lado dele. Que a incentivara a voltar a estudar, que amava o filho dela como se fosse o seu próprio. Talvez tivesse sido o medo de não conseguir dar uma família a que a tivesse impedido de tentar antes, mas agora ela via que havia alternativa.
  Agora, sentada em círculo junto com um grupo de apoio a mulheres que passaram pelo mesmo, ela vencia mais um inimigo: A vergonha de admitir pelo o que já havia passado. Agora ela se sentia mais forte e sentia que sua história inspirava outras. , depois de muitas denúncias, finalmente fora preso e agora não podia chegar perto dela e de seu filho. Alguns diriam que ela não tinha a vida perfeita, mas para que já provara do inferno, sua vida era o paraíso.
  - Vamos, garotas – ela disse se dirigindo ao grupo – Todas juntas: “Você é tão linda”. – Sorriu ao ver as outras mulheres repetindo o mantra para si mesmas e para as outras. Porque ninguém merece ser tratada como menos do que é. E agora ela sabia disso.



Comentários da autora


Quando eu recebi essa música, eu fiquei com muito medo do que escrever, pois é um assunto muito delicado e muito presente na vida de MUITAS pessoas e as vezes você nem se dá conta. Mas eu também fiquei muito feliz de ter a oportunidade de falar sobre isso, se você conhece alguém que passa por algum tipo de violência doméstica, incentive essa pessoa a denunciar. Só assim vamos acabar com isso (mesmo que leve tempo) <3