Uma história de amor com fim

Escrito por L. Andrade | Revisado por Natashia Kitamura

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ANTES

  O aroma de café invadiu meus pulmões e instantaneamente fiquei entorpecida. As olheiras que se formavam debaixo de meus olhos me envelheciam uma década e, sentada em uma cadeira pré-histórica, eu já podia ser confundida como parte da mobília. Ouço o barulho da porta da cafeteria batendo e, mesmo estando de costas para ela, posso identificar com clareza quem acabou de entrar.
  - Está atrasado. – digo sem nem sequer me virar para vê-lo.
  - Isso é doentio. – ele diz puxando uma cadeira e sentando-se à minha frente.
  É incrível como nem mesmo virar a madrugada afeta o humor de . Seu sorriso é contagiante e ele está tão animado que eu poderia jurar que está a caminho de mais um evento em memória de Shakespeare. Não que ele goste de romance, na verdade, o que ele aprecia é a veia trágica de William.
  Corro os olhos pela sua vestimenta tentando achar o motivo para o atraso. veste o de sempre: camisa xadrez, calça jeans e tênis, apesar de ser exageradamente vaidoso. Sigo, então, para seu rosto. Os olhos sempre brincalhões e um tanto quanto maliciosos; o sorriso cafajeste despontando em seus lábios; seus cabelos propositalmente bagunçados, que, com toda certeza, levaram um século para ficar do jeito que ele desejava. Um conjunto tão absurdamente bonito que me causa náuseas.
  - Me admirando outra vez, ?
  - Sabe que não. Apenas tentando aceitar o fato de que você passa mais tempo em frente ao espelho do que eu. – respondo prontamente.
  - Uau! – exclama e eu sorrio, me deliciando com a vitória.
  - Esfolei seu ego?
  - Imagina. Apenas me surpreende você saber o que é um espelho, já que provavelmente nunca teve acesso a um. Caso contrário, já haveria de ter se jogado de um precipício. - ele diz com tanta convicção que eu quase acredito que em suas palavras.
  - Idiota. – murmuro e beberico o meu café já morno.
  - Quando duas pessoas compartilham sua antipatia em relação à outra, isso as aproxima.

X- X

  - Psiu!
  Levanto a cabeça, parando momentaneamente a minha leitura do cardápio pouco variado da cafeteria, e visualizo inclinando a cabeça sucintamente para o lado. Arqueio a sobrancelha e focalizo a loira esbelta sentada na mesa vizinha.
  - Então, o que acha? – ele pergunta sugestivamente, mordiscando o lábio inferior a cada 5 segundos.
  - Tem namorado.
  - Corta essa! Como pode saber?
  - Aparenta ser líder de torcida. Líderes de torcida costumam namorar caras do time de futebol. É como funciona o sistema.
  - Todo sistema tem falhas. – ele pisca e se prepara para levantar.
  - Isso é sério? No meio do café da manhã, ?
  - Alimentos, pessoas atraentes e perigo. – ele enumera com o auxílio dos dedos – Essas são as três coisas que o cérebro humano não pode resistir a perceber.
  - Onde você aprende isso? – pergunto antes de vê- lo rir e se direcionar até a mesa ao lado.

X- X

  - Então, qual foi o resultado de sua insistência? – questiono assim que senta novamente em sua cadeira.
  - Ela me deu o número do celular. – ele dá de ombros.
  - Boas garotas... – o tom piedoso se avoluma em minha voz – Esperançosas elas serão e muito terão que esperar.
  - Não sou tão cruel assim.
  - Você e sua carência incurável estão deixando um rastro de corações dilacerados há um extenso período.
  - Carência incurável? – sua testa vinca e ele parece realmente ofendido – Esse seu julgamento é originário das malditas músicas que você escuta.
  - Oi? – minha expressão é de tanta confusão que represento facilmente um ponto de interrogação.
  - Você deveria ler mais. – ele recomenda.
  - Você ateou fogo na minha biblioteca particular e eu estou traumatizada. – culpo- o e semicerro os olhos, incisiva.
  - Foi um acidente, . – ele me repreende por recordá-lo de seu crime hediondo contra a literatura.
  - Não me enrole, . – vocifero impaciente.
  - Dopamina. – ele percebe minha falta de compreensão e se apruma para me explicar de modo mais enfático. – Ouvir música libera dopamina, hormônio associado ao prazer proporcionado por sexo e drogas. E como eu sei que você não teve contato com nenhum dos dois... – ele deixa a frase no ar tão suavemente quanto um elefante em uma bicicletinha.
  - Apesar de querer escovar seus dentes com ácido sulfúrico no presente momento, eu opto por apenas questionar a brilhante conexão que você realizou. O que minhas músicas têm a ver com tudo isso? – protesto, exaltada.
  - Provavelmente nada. Mas eu me divirto com você toda embasbacada quando eu demonstro erudição.
  Tento ocultar um sorriso de satisfação, mas é totalmente impossível esconder algo de .

X- X

  - Larga o controle remoto, ! – grito enquanto tento capturar o objeto de suas mãos.
  Em poucos segundos somos um conjunto de braços e pernas enroscados, tentando nos equilibrar habilmente em cima do pequeno sofá da minha sala de estar. O cheiro de está em toda parte e é tão difícil respirar quanto tirar notas altas em exatas. Uma obcessão havia crescido repentinamente dentro de mim e eu ansiava por ele como uma criança desejava um doce.
  De algum modo consigo alcançar o controle e retirá-lo de suas mãos.
  - Muita sacanagem. Você acabou com a minha brincadeira preferida. – reclama de um modo infantil que eu tenho dificuldade para categorizar entre fofo ou ridículo.
  - Que seria...? – influencio sua resposta enquanto me endireito em meu assento que, apesar de ser grudado em , é infinitamente mais decente.
  - Te irritar perpetuamente.
  - Oh, isso você concretiza com maestria. – afirmo e antes de me dar ao luxo de mudar de canal, já está encima de mim novamente, abarrotando-me de cócegas.
  - Você sabia que se alguém ameaça que irá lhe fazer cócegas e vem em sua direção, muito provavelmente você vai começar a rir antes mesmo que tenha sido tocado.
  - Quem é você? O Google? – pergunto entre arquejos.
  Ele prefere ignorar a pergunta, continuando a me fazer rir dolorosamente.

X- X

  - É em ocasiões assim que eu penso que o mundo conspira contra mim. – reclamo emburrada.
  Estou sentada na escadinha que dá acesso a varanda de minha casa, quase sendo engolida pela escuridão não sendo a luz escassa provinda de algumas velas e das estrelas que brilhavam majestosamente.
  - Eu diria que você tem uma puta sorte. Sexta-feira à noite debaixo das estrelas e em minha companhia. Quer algo melhor que isso?
  - Energia elétrica, por favor. – peço e admiro as constelações, tentando em meu interior identifica-las por suas formas.
  - Ao observar as estrelas, você está olhando para o passado. – a voz de não passa de um sussurro compreensível – Muitas das estrelas que vemos à noite já morreram.
  - Você é um nerd muito pretensioso. – falo e o encaro de esguelha.
  Seu peito infla de forma afetada e seu rosto se contorce em uma careta.
  - O que te faz pensar isso? – ele pergunta e me surpreendo com a hipótese de que talvez ele deseje realmente saber.
  - Você expõe seu conhecimento como se desejasse ser exaltado por possuí-lo. – murmuro encarando o chão.
  - Isso, sim, esfolou meu ego. – ele responde e suspira penosamente.
  - ... – as palavras se perdem quando percebo que ele está assustadoramente próximo e seu olhar é tão intenso que me intimida.
  - Quer saber de algo interessante? – a pergunta é retórica, pois logo em seguida ele prossegue – Suas pupilas dilatam quando você vê a pessoa por quem sente atração. E devo comentar que seus olhos estão bem arregalados no momento. O que me leva a crer que...
  - Estamos no meio de um blecaute! – o interrompo rapidamente.
  - Ah, eu conheço seu mal. – ele diz categoricamente – Filofobia.
  - O quê?! – pergunto enquanto percebo uma aproximação eminente acontecendo.   - Medo de se apaixonar.
  E é tarde demais para afugentar , pois seus lábios já estão unidos aos meus. E tudo o que eu sinto são borboletas no estômago, do tipo bonito, pegando voo e recuperando o tempo perdido.

X- X

  - Eu não deveria estar com você, apesar de te desejar tão arduamente. – ele sussurrou em meu ouvido e eu careceria de ter ficado com raiva por ele dizer que eu sou o tipo certo de garota errada. Mas costuma fazer as coisas às avessas e eu já me adaptei a isso.
  - E por qual motivo você diz isso? Não sou bonita o suficiente? – questiono brincalhona, fazendo minha melhor pose sensual.
   ri e me aperta ainda mais em seus braços. Seu perfume é tão inebriante, tão único, tão dele.
  - Eu só não quero machucar você. Estou encarregado de fazer isso até o fim de meus dias. – sua voz soa tão monótona que por um instante penso na possibilidade de que talvez ele esteja sendo sincero, até que ele completa com o humor retornando para sua fala. - Sou um destruidor de corações miserável, .
  - Por que você quebraria um coração perfeitamente bom? – arrisco- me a perguntar, deixando minha modéstia de lado.
  - Porque sou egoísta demais para deixá-la partir agora.
  A resposta não faz sentido algum para mim. Por isso, eu prefiro me aconchegar mais nos braços de e apenas sentir o que é estar com ele, esperando que sua reputação de canalha seja uma farsa e que ele seja a pessoa certa.

AGORA

  O trem se move com rapidez pelos trilhos. E minha mente vagueia para épocas que meu cérebro tenta esquecer, mas que meu coração insiste em guardar. Eu sei que soa estúpido e um tanto débil quando eu digo que sinto falta dele. Mas pensar em é tão inevitável quanto respirar ou ter fome; eu simplesmente não posso evitar.
  Apesar de nosso envolvimento não ter durado o quanto eu realmente desejava, ele me marcou permanentemente. Mas eu deveria ter previsto que isso aconteceria. Nosso relacionamento estava fadado ao fracasso desde o início. Melhores amigos não podem se tornar namorados, deveria existir uma regra sobre isso.
  Ocorreu tudo muito repentinamente. Em um momento, estar com ele era revigorante, emocionante, mas, de repente, tudo desandou e ele se tornou frívolo, arrogante. E é difícil você ficar feliz quando a pessoa que ama está para baixo. Então, alguns dias mais tarde, em meio a mais uma discussão ele cuspiu as palavras: “Todos os meus demônios se parecem com você.”. E eu devo ter atirado algo nele, pois minha última visão foi de sua testa sangrando enquanto eu abandonava sua casa para sempre.
  A partir desse dia, a razão do meu viver foi odiar . E ele até que facilitou as coisas para mim. Mudou-se de cidade, apagou meu número da lista de contatos - e fez o favor de deixar isso claro ao nunca mais me telefonar -, e seguiu em frente, esquecendo- se completamente de mim.
  Não vou ser hipócrita e afirmar que superei a situação rapidamente, pois não foi o que aconteceu. A verdade é que, em sonhos, eu o encontrava e tínhamos uma longa conversa. Ele fazia lindos textos para mim, pois era apaixonado por isso. Fascinava-me – algumas das vezes, pateticamente, eu caía em lágrimas – e o beijava. Perdi a conta das vezes que acordei chamando por seu nome. Mas o tempo estava se encarregando de apagá-lo suavemente apesar de mais lentamente do que eu desejaria.
  Foi, então, que eu recebi a carta.
  E chorei.
  E chorei.
  E amaldiçoei a mim mesma por não ter percebido os sinais.
  A frase “Porque sou egoísta demais para deixá-la partir agora”, finalmente fez sentido.
  O trem está parando em mais uma estação e eu vasculho a minha bolsa a procura do meu celular. Pela primeira vez, eu sou a atrasada para o meu último encontro com .
  Ao chegar ao local informado na carta, imediatamente deflagra-se uma tempestade de sentimentos negativos: raiva, culpa, depressão e, sobretudo, medo. Descobrir que sofre de uma doença incurável e que a expectativa de vida provavelmente não vai além do próximo aniversário é para todo mundo, em qualquer tempo, o choque definitivo de toda uma vida. Embora a morte seja uma das poucas certezas da vida, ninguém faz planos para seus últimos momentos na Terra. Mas , contradizendo a todos como sempre, se incumbiu de fazer.
  Eu provavelmente não estava destinada a me tornar mais que uma amiga. Eu seria o seu apoio quando ele estivesse pronto para contar a mim que tinha a sua morte com data marcada. Seria doloroso, obviamente, mas os laços ainda não seriam vigorosos o suficiente para causar em mim danos irreparáveis. Como agora. O fato de optar por me esconder a doença para me preservar parece conflituoso no momento. Por um lado, entendo perfeitamente que atuar como um ser desprezível foi uma boa estratégia; meu coração foi triturado por uma decepção amorosa, pois ele estava querendo me distrair do horror da sua situação. Por outro, acho incompreensível a razão por ele não ter compartilhado isso comigo; ele preferiu ficar sozinho do que me perder, se é que há alguma lógica nisso.
  Entro no cemitério e me guio através das lápides espalhadas pelo imenso gramado. O sol está se pondo e uma brisa suave faz meus cabelos dançarem. Meu corpo treme quando eu acho seu nome incrustado em uma das lápides. Dali a pouco, eu caio de joelhos e começo a chorar. Abro a carta cuidadosamente, lembrando- me dos longos manuscritos que ele costumava guardar em seu bolso. Palavras, como elas significam pouco quando é tarde demais.
   ,
  Eu não queria precisar de palavras para que você pudesse me compreender, mas esta foi a única maneira que me foi viável. Algumas coisas começam da maneira mais louca, da forma menos esperada. E também terminam assim.
  Uma das coisas que aprendi nas minhas relações anteriores foi separar o sentimento das outras coisas. Tentar manter o sentimento no seu estado mais puro. Magicamente dói menos. Sim, há melancolia que te remete à tristeza, mas ao final, não há dor. Há paz. A tranquilidade de ter sido feito o melhor.
  Isso deve ser uma das coisas que mais me doeram. É muito estranho estar afogado num mundo de sentimentos que vão e vem de uma maneira desenfreada, dentro de mim. Existem coisas que pensei que jamais voltariam a acontecer comigo, pois acreditei que sabia controlar meus sentimentos. Acreditei saber o suficiente para não cometer outro erro. É evidente que tenho que aprender que nessas experiências sentimentais, as experiências não servem muito. E o pior de tudo, somado à dor, se soma o fato de sentir-me um idiota.
  Lá atrás, quando éramos bons amigos, seu bom amigo que tentava de alguma maneira raciocinar enquanto você pensava nas decisões a serem tomadas, você foi a única que me fez esquecer todas as dores que a doença me conferia e ainda confere, mas hoje não está comigo para as esquecer, agravando-se com as saudades que sinto.
  Mas eu devia saber que seria impossível não me apaixonar por você. Elevei nossa relação a outro patamar e ao ver o mal que causaria a você decidi esconder o que me corroia por dentro. Perdão, não quis omitir a verdade. Sei que descumpri nosso pacto de estarmos juntos para sempre, mas, apesar de ser muito tempo e você me deixar louco, eu não me importaria de passar ao seu lado; se eu tivesse a chance.
  Quando descobri no verão passado que a morte estava à espreita, eu relutantemente me conformei. Mas eu não contava com a sua aparição em minha vida. Não me entenda mal, você é tudo o que eu poderia desejar, mas é o que eu infelizmente tenho que aceitar não ter.
  Então, compreendi que tinha que deixar-te partir da minha vida, mesmo que ainda não saiba o verdadeiro motivo, apenas tive que aceitar. Se disser que foi ou está a ser fácil, seria a maior mentira que diria em toda a minha vida e mesmo que os nossos caminhos jamais se voltem a cruzar, eu espero que encontre alguém que te complete e tenha a capacidade de se entregar a esse amor como eu me entreguei. Desejo-te toda a felicidade do mundo.
  Da janela vejo uma noite escura e os pingos da chuva que estão agora a cair dão- me a certeza de que nunca vai voltar. As minhas lágrimas vão embaraçando a visão, aos poucos a tua imagem vai-se dissipando e para amenizar a saudade guardo na retina a tua face, deixando nela um beijo para que não me esqueça, mesmo na hora desta minha despedida.

  Do sempre teu,
   .”

  Minha cabeça começar a rodar e, então, eu percebo que, no fim, o que tivemos foi um lindo e mágico amor.
  Um triste, lindo e trágico caso de amor.



Comentários da autora


Olá! Bem, antes de tudo “obrigada por ler” e “espero que tenha gostado” são as primeiras coisas que desejo expressar. A seguir, gostaria de dizer que esse trabalho, no fim das contas, não foi idealizado sozinho por mim já que, na hora de arquitetar a carta de adeus, eu utilizei a ajuda romântico-filosófica de dois blogueiros: Maurício Giaxa Silva e o Mico. Sou grande fã de ambos e por isso, após fazer uma adaptação ao contexto da estória, resolvi incrementar pedaços de seus textos ao meu trabalho. Se puderem conferir o trabalho deles, irão se impressionar com a qualidade. Também quero agradecer às minhas amigas mais íntimas pelo sinal de positivo, me dando o aval para postar o texto. Obrigada, pestes.