Story Of Us

Escrito por Marcella Ribeiro | Revisado por Marcella Ribeiro

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Prólogo

  - Eu sei que o que eu estou fazendo é errado, eu sei, e eu quero parar! Mas eu não consigo - ele disse, com grande esforço, com os olhos vermelhos e o rosto molhado pelas lágrimas que agora deixava cair. - Você disse que queria me ajudar - ele continuou, pegando a minha mão. - Então me ajuda, por favor? - eu sabia que não tinha como dizer não, mesmo que eu quisesse. Meu Deus, como era horrível vê-lo daquela forma! - Por favor, ! Eu não aguento mais decepcionar a minha mãe, eu não aguento mais essa situação e eu preciso de ajuda, mas eu não sei a quem pedir. Eu preciso de você!
  Desistindo de me fazer de forte, passei a mão por aqueles lindos cabelos, agora embaraçados, e me esforcei pra não chorar junto com ele. Coloquei um dedo em seus lábios para impedi-lo de falar novamente. Não precisava ouvir mais nada. Simplesmente não aguentava vê-lo daquela forma. Faria qualquer coisa para colocar de volta aquele lindo sorriso no rosto dele.
  Lentamente, me aproximei dele e passei os braços por cima de seus ombros, aproximando os corpos em um primeiro abraço. Um primeiro abraço há muito tempo esperado. Senti as mãos dele em minha cintura, e me senti bem, de um jeito estranho, mas bom.
  - Vai ficar tudo bem, . - sussurrei em seu ouvido - Eu vou te ajudar.
  - Promete? - o ouvi perguntando, sentindo a respiração quente dele em meu pescoço - Promete que não vai desistir de mim? - Ri de leve, sem humor nenhum.
  - Prometo que vou te ajudar - respondi - E não vou sair de perto de você. Só se você não me quiser por perto. - dei um beijo na bochecha dele e me afastei. Peguei-o pela mão, do modo como minha mãe fazia comigo quando era pequena e o tirei dali em silêncio. Ninguém precisava saber o que havia acontecido. Não importa o que pensam nem o que dizem a respeito dele. O que importa era que ele estava ali, ao meu lado, segurando minha mão e querendo a minha ajuda.
  - Vai ficar tudo bem. Eu sei que vai. - eu disse baixinho, mais para mim mesma do que para aquele garoto alto andando ao meu lado.

Capítulo 1

  Nunca pensei que fosse dizer isso, mas: finalmente de volta aos longos dias na escola! Não aguentava mais aquele hospital, muito menos meu pai que parecia que ia morrer a cada vez que me via. Uma coisa que eu não gosto: pessoas preocupadas comigo. Quer dizer, às vezes é bom, mas não em exagero, certo?! E também porque eu não morri, morri? Não! E bom... O ajudou um pouco nessa parte, mas eu não morri!
  Ah meu Deus, onde está a minha educação?! Meu nome é , tenho 17 anos e estou no último ano da escola. E pra você não ficar meio perdido na história, eu vou resumir o que aconteceu: quase morri. É. E sim, foi ruim. Quer dizer, não é nada legal capotar com o meu carro lindo. Estava chovendo muito, era bem tarde e eu estava muito cansada. Cansada mesmo. Bom, foi nessa parte que apareceu o e me levou para o hospital. Se não fosse ele eu não sei o que teria acontecido. A estrada estava vazia e, sinceramente, ainda não entendi o que ele estava fazendo lá. Acho que eu vou falar com ele quando o vir. Tenho que agradecer. Mas confesso que estou com um pouco de medo porque, bom, sempre que falam dele, não é com elogios.
  O nome é . Estudo com ele desde o 6º ano, mas nunca tinha falado com ele. Era do tipo garoto isolado, que não queria a companhia de ninguém, e quando tinha companhia era aquela turminha da pesada e aquelas garotas atiradas que estão na listinha de todo mundo. E eu sou filha do diretor da escola e tinha uma “reputação” a manter. E pelo o que falam dele, ele não deveria querer fazer alguma coisa além de beber, fumar e dormir, então nunca cheguei muito perto. Bom, estou começando a achar que as pessoas possam estar enganadas, afinal, ele me salvou, certo? E é por ele ter feito isso que aqui estou eu, no carro da , minha melhor amiga, junto com o , meu primo e namorado da , porque eles estão me levando pra escola e me paparicando, tipo, um monte. E eu, claro, estou fingindo que estou escutando o que eles dizem e assentindo com a cabeça, porque afinal, a pode ser pior do que meu pai quando quer.
  Eles não estudam comigo, já terminaram a escola há dois anos, mas disseram que iam me trazer no meu primeiríssimo dia de volta à escola, já que meu carro estava acabado, coitado.
  Depois de muitas recomendações de como pegar um ônibus (como se eu não soubesse) pra voltar pra casa, eu consegui me livrar deles. É nessas horas que eu agradeço o fato de que minha mãe mora em outra cidade e meu pai sempre está ocupado com os assuntos da escola e só volta pra casa pra dormir. E como eu moro com ele, vou ter a casa só pra mim e ninguém pra me perturbar perguntando se tem algo doendo. Não que não tivesse nada doendo, porque tinha, mas ninguém precisa saber disso.
  As aulas se passaram rapidamente, com alguns "bem-vinda de volta" de alguns "amiguinhos" e professores. Não tinha muitos amigos de verdade ali. No intervalo entre as aulas eu procurei pelo , não que eu estivesse muito ansiosa pra falar com ele, mas eu procurei, na intenção de agradecer o que ele havia feito por mim, só que não o encontrei. Existem uns boatos que na hora do intervalo ele saía pra fumar alguma coisa e sempre voltava chapado.
  Quando as aulas finalmente chegaram ao fim, dei mais uma olhada por ali e depois no estacionamento, nem sinal dele. Peguei um ônibus e fui pra casa.
  Essa rotina continuou pelo resto da semana.
  Mas, na sexta, ele apareceu no fim das aulas. Estava parado no estacionamento, falando com um dos colegas. Ou discutindo com um dos colegas, pelo o que parecia. Esperei por ali e quando ele deu as costas ao amigo e foi em direção ao seu carro, corri atrás dele e segurei em seu braço.
  - O que você quer agora? Já não falei... Ah, é você. - ele virou-se de volta ao carro logo que viu quem era. Sacudiu o braço, me forçando a soltá-lo. - O que foi? - ele disse, continuando a andar até seu carro.
  - Só queria agradecer pela ajuda - eu disse, em uma voz fraquinha. - Obrigada.
  - Ótimo, já agradeceu, pode ir agora.
  Foi como levar um tapa na cara. "Ótimo, já agradeceu, pode ir agora." Que garoto estúpido!
  - Precisa ser tão grosso? - não me contive e falei mais alto do que deveria, chamando a atenção de algumas pessoas em volta. - Só vim agradecer.
  Ele se virou lentamente, com o rosto vermelho de raiva, e disse alguma coisa que eu não prestei atenção. Ele estava com o olho esquerdo inchado e um pouco de sangue escorrendo do canto da boca.
  - Ah meu Deus, o que aconteceu com você? - falei surpresa, levantando uma mão para tocar em seu rosto. Ele a empurrou para o lado oposto, sem me deixar tocá-lo.
  - Isso não é da sua conta. Cuide da sua vida.
   abriu a porta do carro, entrou e simplesmente foi embora. E eu fiquei ali, que nem idiota, olhando até o carro desaparecer.
  Queria dizer que não, mas passei o fim de semana inteiro criando um milhão de possibilidades pra ele estar naquele estado. É isso que dá ter uma vida social nula e nenhum namorado. Mas decidi que não iria falar com ele na segunda feira. Quer dizer, não nos conhecemos direito e quando eu vou agradecê-lo por salvar a minha vida idiota, ele é grosso comigo daquele jeito e eu ainda vou atrás dele depois? De jeito nenhum! O problema seria conter a minha curiosidade, mas eu iria conseguir.

Capítulo 2

  Já haviam se passado dois meses desde aquela conversa super amigável e eu estava muito ocupada com os preparativos pra uma 'exposição' que um dos professores inventou de fazer. E como eu sou vice-líder do grêmio estudantil da minha escola (não por vontade própria, óbvio), grande parte do trabalho ficou pra mim e para o William, o líder do grêmio.
  Depois de alguns desentendimentos, estava caminhando para casa, finalmente. Estava nervosa e não queria ter que pegar um ônibus e me estressar mais e muito menos pedir carona pra algum "coleguinha" naquela escola estúpida.
  Já não bastava ter brigado com o estúpido do na hora da entrada, só porque esbarrei nele sem querer, ainda tive que ficar o dia todo na escola por causa daquela exposição idiota e tive que ouvir "gracinhas" do meu próprio pai. Como se fosse minha obrigação fazer com que aquela exposição desse certo!
  Estava a mais ou menos quatro quadras longe da escola quando vi se pegando com uma garota sei-lá-de-onde perto de seu carro. Rolei os olhos e continuei andando, tentando ao máximo não ser vista.
  - Hey! Espera aí!
  Pelo visto, não adiantou.
  - O que você quer agora? - usei as mesmas palavras que ele usou comigo uma vez. Claro que ele não perceberia, mas eu usei mesmo assim.
   deu um sorrisinho sarcástico.
  - Vai voltar pra casa a pé? É meio longe, não acha?
  - Se é longe ou não, isso não te interessa - eu sei, fui grossa, mas e daí? Ele era assim comigo também! E eu ainda estava decidindo se achava que ele sabia que a minha casa era longe ou se apenas imaginou que fosse.
  - Uau, alguém está precisando de um calmante por aqui. - ele respondeu, com uma sobrancelha erguida.
  - E uau, alguém está precisando se tocar de que não tem nada a ver com a minha vida por aqui. - retruquei, cruzando os braços.
  Quando vi que ele não ia responder, me virei e continuei o meu caminho, ignorando a cara de espanto dele. Mas não cheguei a dar nem dois passos e senti um braço me segurando e me virando de volta.
  - Ok, foi mal por hoje de manhã. Acho que fui um pouco grosso com você, e...
  - Ah, você acha? - o interrompi, revoltada. - Na verdade, você deveria ter certeza de que foi grosso. Aliás, você é assim sempre, já deve ser normal, não é? - ele me lançou um olhar tão diabólico que teria me dado medo se o imbecil parado à minha frente não fosse exatamente ele.
  - Você não devia falar assim com quem já salvou a sua vida de patricinha popular. - ele disse, com a voz aparentemente calma, mas um brilho nos olhos que deixava bem claro que ele não estava calmo - Só ia oferecer uma carona. – se justificou.
  - Patricinha popular? - eu repeti e ri disso - você pode até ter salvo a minha vida, mas isso não te dá o direito de falar dela como se soubesse como ela é. E não, muito obrigada, mas eu não quero uma carona com um ser tão desprezível como você.
  Eu estava realmente enfurecida. Talvez esse fosse um dos motivos do porque eu não tenho muitos amigos: sempre fui muito irritada e estourada. Exatamente como ele.
  - E acho melhor você voltar, a garota ali está te esperando - apontei pra garota, impaciente, encostada na porta do carro dele. Lancei um último olhar "ódio-eterno" pra ele e continuei o meu caminho sem olhar pra trás.

  E era sempre assim. Nas poucas vezes que nos falávamos ele era um grosso e eu o tratava da mesma forma que ele me tratava. Até aquele dia.

Capítulo 3

  Aquele dia, eu acordei com uma sensação estranha. E quando eu digo estranha, eu quero dizer estranha mesmo. Como se algo estivesse pra acontecer. Algo importante.
  Ignorei a sensação, embora não sentisse isso frequentemente, e levantei da minha cama linda e aconchegante porque meu pai estava lá embaixo me mandando descer. Não sei pra quê isso. Ele iria viajar esse fim de semana com uma 'namoradinha' que ele arrumou e que tenho grandes suspeitas de que seja a nova professora de Álgebra lá da escola, e queria que eu descesse pra me falar as mesmas coisas de sempre.
  - Muito cuidado se você for sair, tranque a porta direitinho, não fique acordada até muito tarde, faça todas as suas lições, não esqueça nada no fogão, qualquer coisa tem dinheiro no armário da cozinha, mas use somente para emergências. E por favor, não faça uma festa na minha casa! - Viu? Era sempre isso que ele me falava. Mas espera, ainda falta uma coisa - Se cuida e vem aqui dar um abraço no papai.
  Andei até ele, dei um abraço e um beijo e ele foi embora. Voltei pro meu quarto, com a mesma cara de zumbi que saí dele, e me joguei na cama. Acordei três horas depois, com o celular tocando.
  - Alô? - atendi sem nem olhar quem era, o que é bem perigoso. Poderia ser aquele garoto... Como é mesmo o nome dele? Ah, Lucio, um que ficou mais ou menos três meses me ligando todos os dias e me fazendo declarações de amor, até que um dia ele resolveu "tornar público" o "nosso" amor e falou na rádio da escola que queria namorar comigo. Eu mereço, não é?! Bom, depois disso eu tive que dar um jeito nele, fazer o quê...
  - Oi, ! É a Anne. - Ouvi aquela voz irritante do outro lado da linha. É, eu deveria mesmo ter olhado antes de atender - Você vai à festa da Natalie com a gente, né?
  - Não sei, Anne, acho que eu vou ter umas coisas pra fazer e tal... - Respondi sonolenta, querendo desligar na cara daquela vadia.
  - Ah não, , você tem que ir com a gente, a festa não vai ser nada sem...
  Desliguei o celular e levantei, caminhando até o banheiro. Gente falsa. Só se aproximam de mim quando queriam algo. Meu pai é um ótimo homem e tudo o mais, mas às vezes ser filha do diretor não é algo que eu queria pra mim. Aposto que quando eu chegasse nessa festa, ela logo ia me pedir algum favor. Tomei um banho e me troquei.
  Meus planos eram: ficar em casa e assistir às minhas comédias românticas favoritas e melosas. Eu sei, são grandes planos. Mas não estava com nem um pouco vontade de ficar em casa. Resolvi visitar o , já que ele mora perto da minha casa. Provavelmente ia estar lá, então poderia ser divertido.
  Fiquei lá por volta de duas horas jogando videogame e comendo besteira. Só fui embora porque não gosto de ficar de vela atrapalhando eles. Mas por mim, ficaria o dia todo lá. É engraçado, porque no começo, meu primo e minha melhor amiga não se suportavam, mas aí eu usei os meus poderes de persuasão e os obriguei a conversar por dez minutos. Não dizem que o ódio e o amor são sentimentos semelhantes, e que eles podem mudar de um pra outro facilmente ou alguma porcaria desse tipo? Então, foi o que aconteceu. E eu fiquei feliz de verdade, porque eles combinam muito mesmo.
  Voltei pra casa por volta das 6 da tarde, tomei um banho e comi alguma coisa. Mas quando me sentei no sofá pra assistir televisão, aquela sensação estranha voltou. Ignorei ela e fui procurar algum filme pra assistir. Olhei no relógio e vi que ainda eram seis e meia. Decidi que não estava com vontade de assistir TV. Me levantei, tirei o meu pijama e coloquei uma roupa qualquer. Peguei o dinheiro que meu pai deixou "somente para emergências" e saí de casa.
  Não sabia para onde estava indo, mas entrei em uma Starbucks e comprei um café. Fui para uma praça que havia em frente e me sentei em um dos bancos. Sempre gostei daquela praça, era um pouco longe da minha casa, mas meus pais e eu vínhamos aqui quando eu era criança. E mesmo depois, quando saía mais cedo da escola, sempre passava ali nos dias de sol, só pra olhar as árvores e as crianças correndo e brincando. E não, eu não gosto de crianças, mas até que elas são divertidas quando estão longe de mim.
  Àquela hora, não tinha muitas crianças por ali, mas mesmo assim ainda era um bom lugar.
  Já tinha escurecido e eu ainda estava ali fazendo porcaria nenhuma, até que notei certa agitação na rodinha de velhinhos jogando xadrez. É, eles ficam ali o dia todo, e se você quer saber, eles não são nem um pouco agitados! Então eu estranhei, claro, e comecei a prestar atenção ao que eles estavam falando.
  Não consegui ouvir muita coisa, porque não estava tão perto, mas o que eu ouvi foi algo parecido com isso:
  -... Lá no beco... Jogado.
  - Sangrando?
  - Não sei, não olhei.
  - Isso é perigoso, pode ser um daqueles assaltos combinados.
  - Ele parecia realmente mal. Usava um uniforme de escola.
  - Qual escola?
  - Aquela, perto da boate chique.
  Ok, não me culpe, mas eu fiquei muito, muito curiosa depois disso. Quer dizer, mais do que eu já sou. Principalmente na parte que falaram da minha escola. Qual é, a cidade era pequena, não tinha outra escola perto da "boate chique" que nem é tão chique assim. E por que alguém estaria com o uniforme da escola em pleno sábado? E mais: por que alguém estaria com o uniforme da escola em pleno sábado e jogado em um beco?
  Fiquei morrendo de vontade de ir ao tal beco, ver o que tinha acontecido, podia ser algo grave, mas como os velhinhos do xadrez disseram, podia mesmo ser um assalto daqueles combinados. Esses dias passou no jornal que tinha uma mulher caída lá no bosque e aí uns caras pararam pra ajudar e... Enfim, eu decidi que era melhor ir pra casa, já tava escurecendo, só que pra ir pra casa eu precisava passar na frente daquele bendito beco.
  Pensei em dar a volta no quarteirão, mas não queria andar e, pensei comigo mesma, se fosse algo perigoso mesmo, seja lá o que tenha naquele beco, já teriam descoberto.
  Decidi que ia passar por lá e não ia parar de jeito nenhum.
  Quando estava chegando perto do tal beco, ouvi uns gemidos. Parei pra me concentrar e ver se conseguia ouvir algum outro som, esquecida completamente da ideia de não parar de jeito nenhum. Não ouvi mais nada, mas fiquei com medo, estava escuro e eu era a única na rua. Decidi continuar andando o mais rápido possível.
  Já tinha passado do beco e não ouvi mais som nenhum vindo de lá. Continuei andando, mas chutei alguma coisa que fez um barulho enorme. Olhei para os lados, receosa, mas como não vi movimento nenhum, dirigi meu olhar pra baixo e encontrei um relógio quebrado. Peguei o relógio e o analisei, já voltando a andar. Ele era diferente, caro, e eu tive a impressão de que já tinha visto ele em algum lugar. Coloquei o relógio no bolso, para o caso de ainda ter conserto e me concentrei apenas no som dos meus passos.
  Então eu parei.
  Peguei meio desesperada o relógio do bolso, pois tinha acabado de lembrar aonde tinha visto ele antes.

  Era o relógio de .

Capítulo 4

  Voltei correndo em direção ao beco e só parei quando caí por cima de algo. Ou alguém.
  É, como eu imaginei, era ele quem estava lá. Ele tossiu e gemeu quando caí em cima dele, mas logo levantei e peguei o celular, pra tentar clarear um pouco aquele lugar pavoroso de tão escuro.
   estava mal. Muito mal mesmo. Parecia que tinha apanhado ou algo do tipo, e seu rosto estava inchado. Tentava falar alguma coisa, mas não conseguia. Depois que eu me acalmei o suficiente pra pensar no que fazer, tentei levantá-lo, enquanto tentava ligar pra uma ambulância. Mas antes que eu conseguisse qualquer uma das duas coisas, ele segurou a minha mão e fez que não com a cabeça.
  - O que é? Você é idiota, garoto? Vou chamar uma ambulância, fica quieto - empurrei a mão dele pra longe, ainda nervosa, mas ele segurou a minha mão de novo e conseguiu dizer:
  - São só... Uns machucadinhos bobos...
  Eu ri. É, eu ri! Sem humor nenhum, claro, mas ri daquela situação, da cara dele e do jeito que ele falou. Quero dizer, o garoto estava com o nariz sangrando, o olho roxo, a boca inchada, apertando com uma das mãos a barriga, fazendo cara de quem apanhou de um lutador de UFC e me diz que eram só uns machucadinhos bobos?
  Tudo bem, eu sabia que morrer ele não ia, mas eu estava realmente preocupada.
  - Ei, - chamei-o, para que ele voltasse a prestar atenção em mim, ainda ajoelhada ao lado dele - Você acha que quebrou alguma coisa? - perguntei, tentando me acalmar e iluminar com o celular o rosto e os braços dele. Ele negou com a cabeça. - Você devia ir pro hospital...
  - Não devia, não. Me deixa em paz, eu me viro. - As palavras eram rudes, mas ele falou de um jeito tão fraquinho, como se pra falar cada palavra sentisse dor, então nem me importei muito com a ignorância.
  - Vem, vou dar um jeito de te levar pra casa... É muito longe? - perguntei, olhando para as casas à nossa volta. Estava tudo escuro dentro delas e, mesmo se não estivesse, eu não tentaria pedir ajuda. Posso ser irresponsável e inconsequente às vezes, mas não tanto. Voltei meu olhar para , que não havia respondido. Ele estava com aquela expressão meio vazia e confusa, misturada com a dor, de pessoas que levaram uma pancada na cabeça e ainda não voltaram ao estado normal. Coitado! - É muito longe ou não? - perguntei novamente e, dessa vez, ele pareceu me entender.
  - Não precisa... - disse e tentou se levantar, mas quase caiu.
  - Estou vendo que não. - respondi sarcástica - Vem, te ajudo.
  Ajudei-o a levantar, mesmo que ele continuasse resmungando. Por algum milagre, conseguimos sair daquele beco, enquanto eu perguntava por meio de sussurros o que havia acontecido e ele me ignorava em resposta.
   apontou o carro dele, estacionado no fim da rua, embaixo de uma árvore. Achei estranho, já que eu pensei que ele tivesse sido assaltado ou algo assim, e, como resistiu, apanhou. Mas então por que o carro dele estava ali, intacto?
  Andei com dificuldade até lá, enquanto ele se apoiava em mim. Peguei a chave no bolso dele e o ajudei a se sentar no banco do carona. Dessa vez, ele nem reclamou.
  Sentei em frente ao volante e ainda estava tentando decidir se era melhor levá-lo pro hospital ou pra casa dele.
  - Aonde é a sua casa? - perguntei. Se fosse perto do hospital, eu parava lá e dane-se ele se não queria ir.
  Ele tentou me explicar, mas pra falar a verdade, eu não entendi nada. Ainda estava nervosa e ele estava falando com dificuldade, tentando me explicar.
  - Ok, esquece - interrompi-o no meio da explicação e liguei o carro pra tentar sair o mais rápido dali.
  - Não, eu não quero ir pro hospital! - ele gritou de repente e eu dei um pulo de susto. - Pode me deixar aqui, eu dirijo.
  Desliguei o carro de novo e olhei pra ele irritada, tentando ignorar o fato de que ele estava todo inchado, porque se eu começasse a pensar nisso, não conseguiria ser rude como fui.
  - É o seguinte: você é um grosso e você merece levar mais porrada do que já levou. Mas já que você não quer ir pro hospital, beleza, vou te levar pra minha casa e cuidar desses machucados, porque não tô a fim de deixar uma pessoa no estado que você está ir pra casa sozinho, mesmo que essa pessoa seja você. Então cala a sua boca.
  Virei pra frente e liguei o carro. Dirigi pra casa e uns dois minutos se passaram até que ouvi uma risada rouca, misturada com algumas tossidas. Virei para o lado e estava rindo e fazendo caretas. Aparentemente, rir doía.
  - O quê? - perguntei, olhando de relance pra ele com uma sobrancelha erguida, sem entender qual era a graça.
- Nada... - ele disse, parando de rir e passando as mãos pelo cabelo, que estava todo bagunçado. - Só... Só tenta não capotar com o meu carro também, tá? Dessa vez não vou poder te salvar.
  - Vá à merda, .

  Estacionei perto de casa. Ajudei-o a entrar e o deixei sentado no sofá da sala enquanto ia pegar a caixinha de primeiros socorros.
  Quando voltei, ele estava exatamente do jeito que eu deixei, olhando ao redor. Ajoelhei-me em frente a ele e comecei a limpar os machucados. Por incrível que pareça, ele ficou quieto, só fazia umas caretas de vez em quando. Ele estava com um cheiro esquisito. Quer dizer, tudo bem que ele ficou sei lá quanto tempo jogado em um beco escuro e mal cheiroso, mas não era só isso.
  - Então, vai me dizer o que aconteceu? - perguntei, já esperando que ele me mandasse ir cuidar da minha vida. Típico dele.
  - Fui... Assaltado.
  - Sério? - falei, sem acreditar - Interessante, porque a chave do seu carro estava no seu bolso e o seu carro estacionado na esquina. - falei irônica e ele revirou os olhos.
  - Cuide da sua vida.
  É, eu sabia que essa parte da conversa chegaria. Sacudi a cabeça, preferindo não insistir e continuei com meu trabalho.
  - É melhor você tomar um banho - eu disse quando terminei - o banheiro é a segunda porta à direita, subindo a escada. Vou pegar umas roupas pra você. Acha que consegue subir?
  - Não precisa, eu já estou indo pra casa. - ele resmungou, se levantando, mas não deu nem um passo, porque eu entrei na frente dele impedindo-o de avançar.
  - Para de ser teimoso, ! - eu disse, exasperada - Não vou te deixar sair desse jeito. Você não está bem ainda.
  Ele me olhou com raiva. Um fogo queimava no fundo de seus olhos e eu tive que me concentrar no que ele dizia, já que por um momento tive vontade de ficar ali admirando aquele garoto. Se não estivesse todo quebrado, pareceria um anjo demoníaco.
  E não, eu não o acho bonito. Só pra constar.
  - Você é uma patricinha idiota, sabe? - ele esbravejou, realmente irritado - Eu faço o que eu quiser, você não pode me prender aqui!
  - ... - comecei, tentando engolir o insulto e controlar a raiva.
  - Não, eu quero ir embora. - ele me interrompeu rudemente. - Eu não gosto de você, eu não gosto da sua companhia, eu não gosto de ficar na sua casa e eu não preciso da sua ajuda! - Ele despejou tudo de uma forma rápida, e quando terminou de falar, ficou ali me encarando, esperando a minha reação, com um olhar quase de... Triunfo.
  Então era assim que ele queria jogar? Ótimo!
  Saí da frente dele, caminhei até a estante e peguei a chave de seu carro. Joguei a chave em sua direção, desejando com todas as minhas forças que pegasse bem no olho dele e ele ficasse cego, mas a porcaria de chave bateu inocentemente em seu braço e caiu no chão. Bufando, caminhei até a porta e abri.
  - Tchau. - disse, apenas, olhando para a porta.
  E aquele idiota, ao invés de sair da minha casa de uma vez, ficou ali me encarando com a cara de retardado que eu sabia que ele era!
  - Anda, pode ir. - apontei pra porta aberta e fui até a cozinha, deixando ele ali.
  Dei umas duas voltas pelo local, dizendo pra mim mesma que não ia bater nele. Por mais que merecesse, já apanhara o bastante por um dia.
  Finalmente me decidindo e me acalmando o suficiente pra conseguir abrir a boca e não gritar de ódio, abri a porta da geladeira com força e peguei um pote de sorvete pela metade. Respirei fundo e peguei uma colher.
  - Tá aí ainda? - eu perguntei, logo que voltei pra sala e o vi parado no mesmo lugar, não me surpreendendo muito - Sabe, você já pode ir se quiser. - terminei, com um sorrisinho.
  Às vezes, admiro o meu sangue frio. Estava fervendo de raiva por dentro, mas ainda conseguia agir daquela forma, tão... Indiferente. Bom saber que meu treinamento diário desde os 13 anos funcionava.
  Sentei no sofá, abri o pote calmamente e liguei a TV. E ele continuava ali, parado. Podia sentir seu olhar em mim, enquanto eu tentava ignorar sua presença o máximo que podia, mas foi impossível, já que andou até onde eu estava, arrancou o pote da minha mão, colocou ele na mesinha ao lado do sofá, segurou os meus braços e me fez levantar.
  - Qual é o seu problema? - me perguntou, fazendo uma cara de bravo que me deu vontade de rir.
  O empurrei pra longe e ele quase caiu. Fiquei me sentindo mal por isso, ele ainda estava fraco.
  - Qual é o seu problema? - perguntei com raiva - Você não queria ir embora? A porta está aberta, querido. Já que você é tão autossuficiente e não precisa da minha ajuda - enquanto falava, fui até a chave que estava no chão e a peguei, caminhando de volta pra onde ele estava. - Então pega essa sua chave - coloquei a chave com violência na mão dele -, vai até o seu carro, liga ele e some!
  Ficamos nos encarando por um tempo, como se medíssemos qual dos dois tinha a raiva maior. Então ele resolveu falar.
  - Ótimo, é exatamente isso o que eu quero: ficar longe de você! Tchau. - ele foi caminhando até a porta com dificuldade. Passou por ela e a fechou com força. Ouvi um barulho do lado de fora e logo depois ele praguejando.
  Com um sorriso de triunfo no rosto, caminhei calmamente até a porta e a abri. Como eu imaginei, ele estava lá, jogado no chão porque escorregou nos degraus logo em frente à porta da minha casa.
  - Tenha cuidado com os degraus na próxima vez - provoquei, com um ar superior, mas mesmo assim caminhei até ele, pra ajudar.
  - Não, fica longe! – o garoto falou com raiva. Parei onde estava e fiquei observando enquanto ele levantava. Ou tentava levantar, porque não conseguiu.
  - Tem certeza que não precisa da minha ajuda? - eu disse, chegando mais perto. Queria que soasse como se eu estivesse o esnobando, mas na verdade soei como uma idiota, preocupada e prestativa.
   não respondeu, então presumi que ele precisava sim da minha ajuda, mas era orgulhoso demais pra admitir.
  Depois que ele já estava de pé, peguei a chave do carro que tinha caído no chão de novo e entreguei pra ele.
  - Consegue mesmo ir pra casa? - perguntei, como a estúpida que eu era. Quero dizer, ele é um grosso e não merece nem o mínimo esforço vindo de mim, e eu ali, preocupada com ele.
  Pra minha surpresa, desviou o olhar e falou baixinho:
  - Não sei. - depois de um tempo em silêncio, voltou a olhar pra mim. - Eu não sei se consigo ir pra casa.
  Ok, eu merecia um Oscar. Fiz baixar a guarda. Isso sim era impressionante!
  - Tudo bem. - eu disse, já caminhando de volta pra dentro de casa - Anda logo, é melhor você entrar, tá frio aqui fora.
  E lançando um último olhar em sua direção, acrescentei:
  - Amanhã eu te levo, .

Capítulo 5

  Talvez eu devesse ter trancado a porta. Talvez eu não devesse ter dormido tanto e talvez eu devesse ter escondido a chave do carro dele. O fato é que, quando acordei, não estava mais lá. Quase pensei que tinha sonhado aquilo tudo, até olhar um bilhetinho na geladeira, escrito às pressas, com apenas duas palavras.

- Muito obrigado.

  Arranquei o bilhete dali e o guardei. Queria procurá-lo, falar com ele, mas nem o número de seu celular eu tinha. Achei o relógio de na mesinha da sala, no mesmo lugar em que o coloquei na noite anterior. Não percebi o tempo passar enquanto pensava em tudo o que tinha acontecido.
  “Entrei em casa, ajudando a entrar e coloquei-o no sofá de novo. Subi e peguei umas roupas do meu pai que ele não usava mais. Quando desci, percebi que ele não estava mais no sofá. 'Ah, que droga! ' pensei, mas então o vi, no cantinho da sala, olhando uns retratos.
  - Ei, ei, ei... Isso é particular. - afastei-o dali e o fiz sentar-se de volta no sofá. Ele não disse nada e isso me preocupou. Ele não era do tipo que fica calado, o que tornava o fato dele ele estar calado extremamente esquisito. E eu, sinceramente, o preferia gritando comigo a aquele silêncio incômodo.
  Ele foi até o banheiro tomar banho e eu fui preparar o jantar. Comemos em silêncio. Arrumei o sofá da sala do melhor jeito que pude, porque ele disse que não queria atrapalhar mais do que já tinha atrapalhado. Achei até um pouco gentil, mas como sempre, ele falou daquele jeito rude dele como se odiasse o mundo inteiro e fugiria pra Marte pra viver sozinho se pudesse. Depois que ele deitou, fiquei sem ter o que fazer. Por fim, depois de enrolar duas horas na cozinha, subi até o meu quarto. Não estava com sono nenhum, até deitar na minha cama quentinha. Fechei os olhos e dormi imediatamente.”

xx

  Os dias se passaram e ficamos tanto tempo sem nos falar que teria me esquecido de como é seu rosto se não o visse quase todos os dias na escola. Vários desses dias, aparecia com um olho roxo ou com a boca inchada. Eu ficava intrigada e algumas vezes passei noites em claro com a , quando ela ia dormir na minha casa, conversando sobre as possibilidades do que acontecia com ele. E o que eu mais estranhava era que ninguém parecia perceber que cada dia chegava com um hematoma novo.
  Eu sempre tinha vontade de me aproximar, por mais idiota que essa vontade fosse. Talvez puxar uma conversa ou algo do tipo, afinal, tínhamos algo e comum: odiávamos aquela escola o suficiente pra sermos iguais nesse quesito. Mas eu tinha medo de me aproximar. Medo porque, querendo ou não, tudo o que já tinha escutado sobre ele me assustava um pouco, e também porque eu tenho esse estranho dom de fazer coisas ruins se aproximarem de mim e me apaixonar por elas. , definitivamente, parecia uma coisa ruim.
  Na última semana de aulas antes das férias de inverno, cheguei atrasada na escola, porque ao invés de levantar quando o despertador tocou, fiquei mais cinco minutos na cama. E os cinco minutos se tornaram bem mais que isso.
  Quando finalmente passei pelos portões da escola, corri pelos corredores vazios até chegar ao meu armário pra pegar meus livros, e para a minha inteira surpresa, encontrei o indivíduo mais irritante que conheço parado ao lado do bebedouro, bem perto dos armários, encostado na parede fumando um cigarro. Eu nem sabia que ele fumava.
  - É proibido fumar nas dependências da escola, sabia? - Falei em um tom divertido. Uau, primeiro contato em semanas, incrível!
  - E a filha do diretor vai chamar o papai aqui pra me dar uma detenção? - respondeu, cínico.
  - Não, porque o diretor não está na escola hoje, mas a filha do diretor poderia dar um jeito de conseguir uma detenção pra você, se ela quisesse. - sorri, ainda falando em um tom divertido, como se nem ligasse pra ele. O que eu fazia, infelizmente.
  - Duvido. - ele desafiou.
  - Eu também - eu disse, me abaixando pra beber água quando já tinha todos os meus livros em mãos. - Não abuso do meu poder - me endireitei, dei as costas a ele e fui em direção à sala de aula.
  - Ei, espera – o ouvi dizer, pela primeira vez sem sarcasmo na voz, e esperei chegar até onde eu estava e então continuei andando - Aula de quê agora?
  - Álgebra. - Respondi, receosa. Como o meu querido primo diria em uma situação dessas... Que porra era aquela?
  - Com o Binns?
  - É, - confirmei, ainda achando estranho. - Por que o interesse?
  - Por nada. Só não acredito que você está mesmo indo ter aula com aquele velho caduco. Vai sentir saudades dele quando a outra professora assumir todas as aulas que ele dá? - ele riu aquela risada rouca que eu já conhecia. Risada essa tão debochada e falsa que fazia eu me perguntar se alguma vez na vida ele riu direito.
  - Quanto à saudade, eu não sei – respondi, já que estava por dentro das notícias: o velho professor Binns, finalmente, para a alegria de todos, estava se aposentando - Mas quanto a estar mesmo indo pra aula, sim, estou indo. Tem uma sugestão melhor? - ergui a sobrancelha, ainda caminhando.
  - Se tenho?! Claro! E muitas - seu tom amigável estava me assustando, mas me assustei mesmo quando ele me puxou e me prendeu contra a parede, antes que eu pudesse bater na porta da sala de aula.
  - O que você está fazendo? - perguntei surpresa.
  - Te salvando - ele disse, com um sorriso brincando nos lábios - Mas acho que você não quer ser salva... Quero dizer, a filha do diretor matar aula? Não, acho que não!
  Ele me soltou, como se esperasse que eu fosse correndo pra sala, dizendo que fui atacada por uma péssima influência que não queria me deixar assistir à aula.
  - Acha que só porque o diretor é meu pai eu não posso matar aula como todos os outros alunos?
  - Acho, mas se você quiser me provar o contrário... - ele deixou a frase no ar, ainda com um sorrisinho no rosto que, por incrível que pareça, estava sem nenhum roxo.
  - Isso foi um convite? - perguntei, minha voz saindo estranha - Sério, você está começando a me assustar, !
  Ele riu, e quando olhei em seus olhos, vi que era um riso de verdade, diferente de todos os outros que já tinha escutado. Pois é, ele sabia rir direito. Percebi que ele era lindo quando não estava coberto por aquela máscara impenetrável de frieza.
  - É um convite sim. – deu de ombros - Não estou com vontade de ficar na escola, e...
  - Você nunca está! - o interrompi e ele riu de novo, o que me fez sorrir.
  - Ok, nunca estou. Mas é a última semana de aula. E... É tão desnecessário assistir aulas de Álgebra com o Binns!
  - Verdade. Pra onde nós vamos? - soltei quase sem querer. O ânimo dele estava me contagiando, e eu percebi que queria mesmo passar mais tempo com ele.
  - Não sei - respondeu, sorrindo - Que tal ir lá para o pátio dos fundos? Não vamos sair da escola, então se nos pegarem, não podem dizer que não viemos na última semana!
  Eu ri e fomos andando. O corredor estava vazio àquela hora e enquanto conversávamos sobre como a inspetora era chata, velha e enrugada, uma vozinha irritante dentro da minha cabeça me dizia que aquele início do que parecia ser uma possível amizade não acabaria bem.
  Pelo menos, não pra mim.

  Passamos tanto tempo nos fundos da escola que só percebemos quando o sinal do fim das aulas tocou.
  - Caramba, já é tarde assim? - perguntei.
  Ele fez menção de olhar no relógio, mas não havia relógio nenhum pra olhar.
  - Deve ser umas três horas...
  - Esqueci de falar, o seu relógio ainda está lá em casa. - eu disse, me abraçando pra espantar o friozinho que fazia.
  - Eu sei - ele disse, me olhando de lado.
  - Por que não foi buscar?
  - E por que você não me entregou? - rebateu e eu ri.
  - Porque... - comecei.
  - Porque todo mundo tem medo de mim e de falar comigo nessa escola. Inclusive você - ele disse sorrindo sarcástico, mas parecia haver um tom de tristeza em sua voz que ele tentou esconder.
  - Quem disse que eu tenho medo de você? - desafiei e virei de lado pra encará-lo. - Você não me dá nem um pouco de medo, se quer saber.
  Ele me olhou nos olhos por alguns segundos, como se quisesse encontrar neles palavras que não disse, me perfurando com aqueles olhos profundos e , que pareciam tirar um raio-X de mim.
  - Não, você não tem - ele concordou - Você é... diferente?
  Encarei-o tentando entender o que ele quis dizer, mas ele olhou para o lado oposto e eu olhei também.
  - Quem fez aquilo com você? – perguntei, e ele voltou seu rosto pra mim, com cara de dúvida. - Você sabe... Aquele dia lá no beco...
  Percebi que fiz a coisa errada, porque se levantou na mesma hora e andou pra longe de mim.
  - Talvez não seja da sua conta. - disse, colocando as mãos nos bolsos da calça, a mochila nos ombros e se afastando ainda mais.
  Suspirei e voltei a olhar pra frente depois que o vi virar o corredor em direção às salas de aula. Queria muito ajudar, mas ele não queria ajuda. E depois de conhecer esse outro lado dele, um lado quase sensível, quis conhecer mais. Quis estar perto dele e quis decifrar cada parte dele, aos poucos.
  Quis que fosse meu amigo.
  "Diferente" ele disse sobre mim. E eu queria poder ser "diferente" do lado dele.
  "Eu sabia que você se apaixonaria..." ouvi aquela vozinha irritante dentro da minha cabeça de novo, me repreendendo, e respondi, brigando comigo mesma: "não estou apaixonada!"
  Não ainda.

Capítulo 6

  No último dia de aula, cheguei à escola com um peso a mais no bolso e logo detectei o cara alto, encostado na parede ao lado do bebedouro. Caminhei até ele e quando me viu me aproximando, pareceu surpreso.
  - Oi - eu disse cordialmente - Acho que você esqueceu isso comigo. - tirei o bonito relógio do bolso, que ainda estava com o vidro quebrado, e entreguei a ele.
  Percebi que muitas pessoas nos olhavam, enquanto ele pegava o relógio da minha mão e colocava no pulso. Legal, agora eles prestavam atenção ao fato de existir.
  - Hmm... Obrigado. - ele agradeceu, me olhando de um jeito estranho.
  - Qual é a sua próxima aula? - perguntei, meio desconfortável com toda a atenção voltada pra mim, mas decidida a ignorar tudo aquilo.
  - Sei lá - deu de ombros, ainda me olhando daquele jeito estranho. Soltei uma risadinha.
  - Qualquer que seja, duvido que você esteja com vontade de ir - eu falei calmamente - Quer matar algumas aulas com a filha do diretor? - perguntei com uma sobrancelha erguida. Ele sorriu de uma forma estranha e o sinal das aulas bateu. Os alunos foram se encaminhando para suas salas e ele continuou me encarando, como se quisesse ter certeza de que ouviu direito e não estava ficando louco.
  - Você está querendo arrumar problemas - disse, por fim - Vamos pro pátio de novo? - perguntou, com um sorrisinho quase... fofo. Apenas confirmei e fomos caminhando até lá, rindo do fato de que, dessa vez, a filha do diretor era quem estava salvando o garoto-problema de assistir às aulas.

  Contei tanta coisa sobre mim... Como eu era quando criança, o que gostava de fazer, que livros gostava de ler, como conheci a e como a juntei ao . Contei como sempre quis fugir dessa escola e como odiava todas aquelas pessoas.
  No começo ele parecia meio retraído, como se tivesse medo de que eu perguntasse sobre a vida dele, mas com o tempo, ele pareceu querer ouvir mais sobre mim. Fazia comentários irônicos e até engraçados. Há muito tempo não me sentia tão bem conversando com alguém que não fosse minha melhor amiga ou meu primo.
  - E os seus pais? São casados? - eu perguntei, logo que disse que meus pais eram separados, o que ele parecia já saber, mesmo que eu ignorasse como. Ele demorou um tempo pra responder e achei que iria mudar de assunto como fez quando perguntei diretamente algo sobre ele ou a vida dele.
  - Meu pai morreu quando eu tinha três anos, mas não cheguei a conviver muito com ele porque ele se separou da minha mãe logo depois que eu nasci. - ele contou, sem olhar pra mim, mexendo no cadarço do tênis como se quisesse descobrir todos os segredos dele.
  - Ah... Sinto muito, não devia ter perguntado. Desculpa. - falei, muito sem graça.
  - Tudo bem... - ele sorriu quando olhou pra mim e percebeu que eu tinha ficado vermelha por causa da enorme mancada - Não me faz tanta falta, sabe? A minha mãe dá conta de tudo. Mas às vezes é ruim não ter um pai.
  Ficamos um tempo em silêncio. Mas não era um silêncio desconfortável, de certa forma, era bom.
  Fiz mais perguntas sobre ele e pareceu disposto a responder todas. Contou que, quando era mais novo, era louco pra ter uma banda e já tinha até tido um baixo, embora tocasse também outros instrumentos. Era também viciado nos clássicos do cinema, porque sua mãe também adorava e assistiam juntos desde que ele era pequeno.
  Ficamos tanto tempo ali que quase esqueci que tinha uma casa, até que fomos interrompidos pela minha barriga roncando.
  - Nossa, tem um leão aí dentro? - ele perguntou rindo, apontando pra minha barriga e eu bati de brincadeira nele, mas ri também.
  Nos esgueiramos pelos corredores da escola e pensamos em tentar algum jeito de fugir dali sem que algum inspetor nos visse, mas demos sorte e bem quando estávamos chegando ao pátio, o sinal do fim das aulas soou e tudo o que tivemos que fazer foi nos misturarmos com o fluxo de alunos desesperados pra sair daquela escola e declarar oficialmente o fim das aulas naquele ano.
  Depois que conseguimos sair da escola, nos afastamos um pouco e fomos até uma lanchonete por ali, pra comer alguma coisa, afinal, eu não era a única com fome.
  - Você não é tão ruim quanto as pessoas pensam - eu comentei fazendo uma cara pensativa, enquanto estávamos sentados em uma das mesinhas da tal lanchonete, começando a entender o porquê de ele me olhar daquele jeito estranho quando fui falar com ele em público. Ninguém fazia isso. - Até que você é legal. - completei, ainda pensativa.
  - Hmm... Obrigado, eu acho - disse rindo - Pena que não posso dizer o mesmo de você, não é? - brincou, enquanto eu revirava os olhos. Mas não me importei de verdade. Ele estava sendo tão sociável e legal e interessante como eu nunca vira antes, que não havia como me importar com isso.
  Quando terminamos de comer, depois de duas crises de riso (a primeira porque conseguiu derrubar seu sanduíche e tentou recuperá-lo antes que chegasse ao chão da forma mais cômica possível e a segunda porque um dos funcionários do local escorregou ao limpar um pouco de suco do chão e caiu de bunda), fomos caminhando até o estacionamento da escola, onde estava o carro dele.
  - Você não vai me contar, não é? – perguntei, logo depois que ele me ofereceu uma carona.
  - Contar o quê? - perguntou, distraído.
  - Quem fez aquilo com você. - falei. Eu não estava apenas curiosa, eu estava preocupada de verdade.
  - Já disse que não é da sua conta, não disse? - ele falou, um pouco bravo, enquanto entrava no carro. - Vai ficar aí? - perguntou, apontando pra mim, que ainda estava parada ao lado da porta dele.
  - Não. - respondi, olhando pros meus pés.
  - Então entra. - convidou, tentando, pelo o que eu percebi, tirar a raiva que ele usara antes da voz.
  - Não... - Eu disse, agora olhando pra ele e suspirando - Vou andando pra casa, obrigada por oferecer a carona, mas não precisa. Boa noite - saí andando na direção que sempre tomava para ir para casa. Não estava brava, mas estava começando a me irritar com aquela insistência dele em não me deixar ajudá-lo. Ouvi a porta do carro batendo e passos vindo atrás de mim.
  - , para de ser teimosa... - começou, meio hesitante.
  - Para você de ser teimoso! - falei, me virando pra encará-lo, com a voz meio exasperada. - Eu só queria te ajudar, só isso. Porque já deu pra perceber que a pessoa que fez aquilo com você continua fazendo. - eu disse, o que era verdade. - Você aparece na escola com alguma parte do corpo roxa ou quebrada toda semana! Mas você é sempre tão grosso comigo... - percebi que havia um pouco de mágoa na minha voz e me forcei a fazê-la voltar ao normal - Se você não quer a minha ajuda, tudo bem, também não preciso que você faça nada por mim, então, obrigada pela carona, mas não quero - me virei e continuei meu caminho, sabendo que a partir de agora eu, provavelmente, só iria vê-lo quando as aulas voltassem depois dos feriados de fim de ano. E mesmo quando isso acontecesse, não nos falaríamos de novo. Não da forma que tínhamos feito aquele dia.
  - Você não pode me ajudar - ainda o ouvi dizer, antes do som da porta do carro batendo chegar aos meus ouvidos e antes de saber que meu mais novo quase-amigo estava indo embora, sem nem ao menos considerar o fato de que eu estava tentando deixar claro que faria o que pudesse pra ajudá-lo.

Capítulo 7

  Estava de pijama, sentada no sofá da sala lendo um pouco. O som da chuva lá fora me reconfortava. Tentava me convencer de que era um idiota e eu não deveria mais falar com ele, mesmo quando as aulas voltassem.
  Fechei o livro com um estrondo quando percebi que já havia lido o mesmo parágrafo 5 vezes e não tinha absorvido nada daquilo. Por que ele não podia simplesmente ser um garoto normal, gentil e menos orgulhoso?
  Claro, porque se ele fosse assim, não seria !
  Respirei fundo e me deitei no sofá, pela primeira vez desejando que meu pai não tivesse viajado. Ele estava na casa da minha tia, a mãe de , que era em outra cidade, pois estava tirando miniférias. Adorava quando ele ia viajar, pois eu podia ficar sozinha e pensar, mas agora eu precisava dele ali, falando e falando e falando e fazendo ligações e reclamando dos problemas da escola, porque eu não queria pensar.
  Quando levantei pra ligar a TV, ouvi a campainha tocar. Quase abri a boca de espanto. Será que meu pai resolveu voltar antes?
  Com essa esperança, abri a porta e levei um susto. Era ele. . Todo molhado, com um olhar meio desesperado.
  - Desculpa, desculpa... Eu não estou acostumado com tanta atenção de alguém, sabe? - ele despejou, segundos depois que eu abri a porta - Você só quer me ajudar e eu só te trato mal... Você até foi falar comigo na escola! - riu, sem graça - Ninguém faz isso, nunca. E eu já estou tão acostumado a guardar as coisas pra mim, a ser sozinho, que eu não sei como agir com você! - sacudia os braços, exasperado, como se palavras não fossem suficientes pra me fazer entender, então ele tinha que gesticular - Você me entende, não entende? - perguntou, mas aquilo parecia mais um pedido do que uma pergunta.
  Fiquei encarando-o por um tempo, tentando absorver tudo o que ouvi e tentando saber se eu não estava sonhando com tudo aquilo. Parecia tão impossível que estivesse me pedindo desculpas!
  - Fala alguma coisa! - ele pediu, batendo o pé, e eu achei tão esquisita a visão de um garoto daquele tamanho batendo o pé como uma criança que comecei a rir. O que, obviamente, foi a coisa errada a fazer. - Sabia que não devia ter vindo - ele disse, com um tom de raiva misturado com mais alguma coisa que não consegui identificar. Decepção, talvez. - Sabia que não devia ter vindo aqui essa hora, sou um idiota mesmo. Boa noite - ele me deu as costas e saiu andando, parecendo nem ligar pra chuva que caía com força àquela hora.
  - Ei, espera! - gritei e saí correndo atrás dele quando percebi que ele entendeu errado a minha reação.
  Só o alcancei quando ele já estava entrando no carro e eu encharcada.
  - Espera, espera! - eu disse, parando ao lado da porta que ele tinha acabado de fechar e olhando pela janela pra ele. Bati na janela, pra chamar sua atenção - Eu não queria rir de você, juro. Desculpa. - Gritei, pois a chuva o impediria de me ouvir. Ele já havia ligado o carro, mas desligou e saiu de dentro, se apoiando na porta, me encarando frustrado.
  - Por que mesmo eu achei que você fosse diferente? Que você se importasse? - ele colocou as mãos na cabeça, enquanto me olhava - Eu não devia ter vindo, desculpa te atrapalhar!
  Eu tremia por causa da chuva que colava minhas roupas no meu corpo. Afastei o cabelo molhado do rosto e reuni coragem pra responder. Ele tinha entendido tudo errado!
  - Quem te disse que não me importo? Se não me importasse, não teria ido atrás de você, mesmo depois de você ser um grosso comigo, pra tentar te ajudar. - eu disse, em um tom mais alto que o normal, pra que ele pudesse ouvir - Não teria te trazido pra minha casa, pra cuidar de você quando você precisou. Não estaria tentando ser sua amiga... - comecei a falar ainda mais alto, me alterando. Por que ele não podia simplesmente ver aquilo tudo? - E não sei se você percebeu, , mas por sua causa eu estou na rua, de pijama e toda molhada, então, por favor, não diga que eu não me importo! - encarei-o quase com raiva e esperei que ele dissesse algo. Não sabia o que eu queria ouvir, só queria saber que eu ainda teria a possibilidade de passar os dias ao lado dele novamente.
   me encarou por alguns segundos, no começo parecendo confuso e depois determinado. Então fechou a porta do carro e andou em minha direção com um olhar decidido. Achei que ele fosse brigar comigo, ser grosso como ele sempre era, mas para a minha surpresa, ele colocou uma de suas mãos em minha cintura, fazendo com que eu me aproximasse ainda mais dele e, colocando a outra mão carinhosamente em meu rosto, me beijou.

  Eu nem sequer pensei em resistir, mesmo que no começo estivesse completamente surpresa por ele ter feito aquilo, daquele jeito, naquela chuva e depois de uma briga. E eu nunca pensei que um beijo fosse capaz de me fazer sentir todas as coisas que senti àquela hora: era quase como se todos os dias pensando nele e me frustrando com ele de repente valessem à pena, porque por mais que fosse um tanto (muito) recluso e uma pessoa extremamente difícil de lidar, eu sabia que aguentaria tudo de novo e de novo se, no fim, tivesse a oportunidade de ser beijada por ele novamente.
  Eu tremia, e dessa vez não era por causa do frio.
  Quando ele me soltou, continuei de olhos fechados, como se pudesse de alguma forma prolongar o momento.
  - Desculpa, ah... Droga, eu não devia ter feito isso! - ele começou, com a voz pingando arrependimento e instantaneamente abri os olhos, sentindo as palavras dele me ferirem como facas recém afiadas. - Agi por impulso, não devia ter feito isso, e...
  - É melhor a gente entrar - respondi, ouvindo a minha voz vazia como nunca estivera antes, tentando não deixar transparecer a revolução que acontecia dentro de mim - A chuva está aumentando...
  Dei as costas a ele e caminhei pra dentro de casa, só checando se ele me seguia quando já tinha entrado. Eu sentia o olhar dele em mim, mas preferi não retribuir. Deixei-o ali e fui buscar toalhas pra nós dois, enquanto pensava no quão idiota eu era. Ele pediu desculpa. Pediu desculpa por ter me beijado e disse que não deveria ter feito aquilo. Talvez a vozinha dentro da minha cabeça estivesse certa, talvez eu fosse tão idiota que acabei confundindo tudo e agora me sentia um nada por, pelo breve momento no qual me beijou, desejar que aquilo fosse dar em alguma coisa. Mas agora eu percebia que não daria em nada, nadinha.
  Porque, como ele mesmo disse, agiu por impulso. Ele só queria uma amiga, e não exatamente me queria da forma que eu pensei que quisesse.
  Fechei os olhos com força, tentando entender tudo aquilo. Por que tinha me afetado tanto com o que ele disse? E, pior ainda, por que tinha me afetado tanto com o que ele havia feito?
  Talvez eu realmente tivesse feito uma confusão de sentimentos, e aquela vontade de estar perto dele, de ajudá-lo era uma desculpa pra chegar à parte onde nos tornaríamos um casal. Eu o queria, essa era a verdade. Queria tanto que a minha vontade era voltar pra sala e beijá-lo outra vez, mas depois do que ouvi, me sentia tão infeliz que nem sabia se queria olhar nos olhos dele de novo.

  Quando voltei pra sala, entreguei a toalha a ele e subi pro meu quarto pra trocar de roupa. A chuva lá fora havia aumentado ainda mais, se é que era possível, e eu me senti pior. Desci as escadas e entreguei a mesma muda de roupas que havia emprestado a ele da última vez. Ele pegou da minha mão, mas continuou parado.
  - A chuva aumentou... – disse o óbvio, e ouvir a voz dele de novo me fez reviver a cena que eu sabia que iria ficar por muito tempo na minha cabeça. - Mas eu posso tentar ir embora, se você quiser... - olhei-o nos olhos pela primeira vez, e nada do que eu pensei conseguiu me obrigar a dizer que ele podia ir.
  - Não, é melhor você ficar, daqui a pouco essa chuva passa. – respondi, aliviada por perceber que a minha voz estava normal.
  - Olha, sobre o que aconteceu...
  - Deixa pra lá – o cortei, antes que ele pedisse desculpas novamente – Vamos só... esquecer isso.
  Olhei nos olhos de por um momento, e então ele assentiu.
  - É melhor você ir se trocar - apontei pras roupas encharcadas dele e ele concordou silenciosamente.
  Sentei no sofá e tentei me controlar. Era nisso que dava criar expectativas sobre alguma coisa: eu me decepcionava. E a parte mais irônica é que eu nem podia culpar por aquilo. Por ter me beijado, sim, mas não por ter feito eu me sentir daquela forma, afinal, quem criou as expectativas todas fui eu, não ele. Por que mesmo eu me permitia ser desse jeito? Quis que a vozinha que vivia me repreendendo voltasse à minha mente pra me falar tudo o que eu merecia ouvir, mas até mesmo ela me abandara.
  Ouvi os passos de se aproximando e me levantei, indo até a cozinha. Ele me seguiu até lá. Antes de me virar pra ele, me concentrei em pôr a máscara que eu sempre usava quando não estava sozinha, aquela que me fazia parecer uma garota normal, que não se intimida por pouca coisa.
  - Você quer comer alguma coisa? - perguntei, assim que achei que era seguro fazer.
  - Não, não estou com fome - disse. Ele ainda me olhava como se quisesse explicar o que havia acontecido, mas eu não daria oportunidade pra ele fazer isso.
  - Você está horrível - eu falei rindo, quando reparei que ele ficava realmente mal com as roupas velhas do meu pai, e diferente da outra vez que as vestira, dessa vez ele estava mais sociável, então não me xingaria por rir dele e nem entraria em uma briga desnecessária por causa disso.
  Ele riu também e para meu alívio um ar de naturalidade apareceu entre nós e eu soube o que devia fazer. Ele não me queria do jeito que eu o queria, mas eu não sabia se conseguiria ficar longe dele depois de tudo. Eu não podia negar que, depois de tanto tempo, era bom ter companhia, alguém diferente com quem conversar. Decidi que seríamos amigos, assim como eu era amiga do e da , somente amigos. Prometi a mim mesma que não deixaria qualquer outro tipo de sentimento que eu já provavelmente tivesse por ele crescer. Talvez eu estivesse apenas confundindo as coisas, afinal, ele era um garoto, e um garoto não poderia ter todo aquele poder sobre mim.
  Mas era realmente uma pena que ele tivesse que ser um garoto tão bonito.
  Voltamos pra sala e me lembrei que da última vez que o veio aqui, ele deixou um baralho que usamos pra nos distrair. Perguntei ao se ele queria jogar e ele aceitou.
  Ficamos muito tempo jogando e conversando, até percebermos que a chuva havia diminuído e ele poderia ir pra casa.
  Estávamos olhando pra janela quando percebi seu olhar voltado pra mim. Me virei e o vi levantar uma das mãos, como se fosse acariciar o meu rosto, mas logo a abaixou.
  - Acho que eu tenho que ir - disse. Então sorriu aquele sorriso lindo e eu me senti enjoada. Como eu podia sentir tantas coisas em um dia só?
  - Tudo bem - respondi normalmente - Eu te levo até a porta.
  Depois que ele voltou a vestir suas próprias roupas, que estavam ainda um pouco úmidas, fui com ele até a porta e esperei ele ir até o carro. No meio do caminho, porém, virou e voltou até a minha porta, me deu um beijo no rosto e disse, com um sorriso:
  - Até amanhã.
  - Amanhã é sábado e as aulas já acabaram - eu lembrei, em um tom de dúvida.
  - Eu sei... - ele falou, aumentando o sorriso.
  - Então... - comecei, confusa - Como vamos nos ver?
  - Achei que você queria ser minha amiga... - ele respondeu, em um tom muito meigo pra ele - Já desistiu? - perguntou, sorrindo de novo.
  - Bom... Não.
  - Ótimo - disse e me deu outro beijo na bochecha - Passo aqui às 2 horas amanhã pra gente dar uma volta.
  Fiquei tanto tempo parada na soleira da porta que só percebi quando o telefone tocou. Atendi e falei um pouco com a . Tive o cuidado de não mencionar nada sobre hoje, contaria a ela outro dia. Depois que desliguei, deitei no sofá e tentei não pensar, mas era impossível.
  "Achei que você queria ser minha amiga... Já desistiu?" o sorriso dele voltava à minha mente o tempo todo e me obriguei a falar pra mim mesma que seríamos amigos.
  Apenas amigos.

Capítulo 8

  Acordei às nove, tomei um banho e fiquei umas duas horas pensando no que vestir. Depois que percebi o que estava fazendo, me senti tão idiota que desci as escadas correndo e fui preparar o almoço. Quando acabei de comer, tomei outro banho e voltei pro quarto. Não havia deixado nada separado e não sabia o que usar. Coloquei uma calça jeans, uma blusa preta simples e um tênis. Me olhei no espelho e não sabia o que fazer com o meu cabelo. Deixei-o solto, liso e como ele sempre foi e desci pra assistir um pouco de TV, pra fingir que eu não estava ansiosa.
  Uma e meia.
  Eu estava tentando pensar em qualquer outra coisa que não fosse o fato de que ele passaria ali às duas horas.
  Uma e quarenta e cinco.
  Estava tentando colocar na minha cabeça que éramos apenas amigos, aquele beijo foi um erro que não se repetiria mais e tudo o que eu queria era ajudá-lo, não importando o que ele tivesse. Olhei no relógio.
  Duas e cinco.
  Será que ele não viria? Senti-me enjoada de novo e me perguntei o que foi que aquele garoto fez comigo. Fui até o banheiro me olhar no espelho e escovar os dentes. De novo.
  Duas e quinze.
  Devia ter acontecido alguma coisa, talvez ele esqueceu algo em casa e voltou pra buscar... Ou talvez ele esqueceu que marcou de dar uma volta comigo.
  Duas e vinte e cinco.
  Definitivamente, ele tinha esquecido de mim! Bufei e parei de andar de um lado para o outro, coisa que eu tinha acabado de perceber que estava fazendo.
  Duas e quarenta.
  É, ele não viria mais. Sentei-me no sofá e tirei o tênis. Fui procurar um filme pra assistir e escolhi um que sempre me fazia chorar e refletir: Sociedade dos Poetas Mortos. O tema do filme ficava vindo à minha cabeça "Carpe Diem", "aproveite o dia". Que belo jeito o meu de aproveitar o dia!
  Desisti de ver o filme logo que pensei nisso. Me deitei no sofá, olhando pro relógio o tempo todo, como se quisesse que ele voltasse a me dizer que ainda era uma e meia, portanto, ainda poderia vir.
  A campainha tocou e eu dei um pulo.
  Duas e cinquenta e sete.
  Será que era ele? Abri a porta e sorri ao vê-lo, com uma bermuda cinza e uma blusa azul, os cabelos jogados pra qualquer lado.
  - Desculpa a demora - ele disse, olhando pra mim e me avaliando. - Você já está pronta? - Perguntou e então olhou pros meus pés. - Acho que não. – disse, rindo.
  Deixei-o entrar e fui colocar meu tênis. Perguntei se ele queria algo e ele negou. Sentindo-me aliviada, saímos de casa.
  Fomos até a praça que eu adoro e nos sentamos lá, olhando as poucas crianças que brincavam. Começou a chover e as crianças foram embora. Corremos pra debaixo de um toldo de uma lojinha que tinha ali perto e começamos a rir de nada, parecíamos dois idiotas. Ficamos ali até a chuva diminuir e depois voltamos pra minha casa. Fomos até o mercado que tinha por perto e compramos salgadinho e refrigerante. Quando voltamos, peguei um velho jogo de tabuleiro que eu tinha em casa e jogamos até a madrugada, conversando sobre qualquer coisa que viesse à mente.
  Quando ele foi embora, não consegui tirar o sorriso dos lábios. Fui dormir tão bem que nem percebi que naquele dia não tinha sentido vontade de fazer o que eu fazia todas as noites, depois de viver um dia normal como todos os outros e saber que não teria ninguém do meu lado.

  Os dias se seguiram e quase entramos em uma rotina. Dois dias na semana íamos ao cinema ou assistíamos a algum filme em casa mesmo. Nos outros dias, ficávamos na minha casa ou na dele, conversando, jogando videogame ( teve que me ensinar, e depois de um tempo eu já era melhor que ele), comendo besteira e rindo das nossas histórias. Claro, brigávamos bastante às vezes, mas ao invés de continuar com aquele estranho clichê: "Você me irrita, eu te irrito e depois vamos embora sem nos falar", tentávamos consertar as coisas, ou mudávamos de assunto ou, ainda, tínhamos crises de riso porque, pra ser sincera, a maioria das brigas era por alguma coisa extremamente idiota.
  As coisas já estavam mais normais pra mim, que me sentia bem em tê-lo por perto e ficava feliz em saber que ele também me queria por perto. O meu lema era: "Amizade sempre em primeiro lugar", e eu não correria o risco de estragar isso por causa de uma idiotice que eu pensava sentir.
  Depois de duas semanas dessa rotina, em uma sexta-feira, esperei chegar às duas horas, como sempre fazia. Mas ele não chegou. Quando percebi que ele não viria, fui até a casa da e passamos o dia juntas, como há algum tempo não fazíamos. Contei a ela sobre tudo o que aconteceu nas últimas semanas.
  - E como você se sente a respeito dele? - perguntou. Ela sempre tinha que me fazer essas perguntas embaraçosas?
  - Ele é meu amigo, só isso. É como você e o - Falei, mas sabia que ela conseguiu detectar a decepção na minha voz.
  - ... - ela começou, cautelosa, e eu sabia sobre o que ela ia perguntar -, você não está fazendo aquilo de novo, está?
  - Não, , juro que não. - Eu disse, quando ela me olhou desconfiada. - No dia que ele me beijou, sim, mas não foi por causa dele, entende? - eu comecei a falar muito rápido, como sempre fazia quando falava sobre isso, como se prolongar o assunto prolongasse a dor - Foi por minha causa, como sempre é. Eu me senti, sei lá, mal com aquilo. Senti como se ninguém me quisesse... - me olhou com pena, e eu senti um pouco de raiva ao ver isso. Odiava quando ela me olhava assim - Mas eu não tenho feito mais isso - garanti - ele me faz bem. Passar o dia com ele me faz bem. - Olhei nos olhos dela, querendo que minha melhor amiga visse que o que eu dizia era verdade. - Eu não senti mais necessidade de fazer isso. - terminei.
  Ela sorriu aliviada, mas mesmo assim puxou meu braço pra perto dela, e eu já estava preparada para aquilo. Sabia que ela ia querer checar, então não afastei a mão dela. Apenas a deixei puxar a manga da minha blusa pra cima e ver que os cortes mais recentes estavam cicatrizando.
  - Continua assim, por favor - ela disse, com lágrimas nos olhos. - Por favor.
  - Eu vou continuar. Não vou fazer mais. - Prometi, pela milésima vez, e a abracei forte.
  No fundo, eu sabia que a vontade era mais forte que eu. No fundo, sabia que só iria quebrar outra promessa. Mas eu odiava vê-la daquele jeito, odiava vê-la daquele jeito por minha culpa. E de qualquer forma, os cortes estavam sumindo. Talvez eu diminuísse a frequência com que os fazia. E quem sabe um dia eu pararia com isso.
  Mas eu sabia que ia demorar. E não contei nada disso pra .

Capítulo 9

   também não apareceu no sábado nem no domingo. Liguei na casa dele na segunda, mas ninguém me atendeu. Comecei a ficar preocupada que algo tivesse acontecido com ele e igualmente preocupada com o fato de que, talvez, ele já estivesse cansado de ter uma amiga.
  Quando ele chegou na quarta, às duas horas, eu entendi porque não tinha aparecido antes. Ele tinha um olho um pouco roxo. Já estava ganhando aquela tonalidade meio esverdeada, mas eu ainda conseguia ver. Quando eu perguntei a ele o que tinha acontecido, ele disse que se envolveu em uma briga em uma boate, mas não entrou em detalhes. Alguma coisa me dizia que ele estava mentindo, mas preferi deixá-lo me contar por vontade própria.
  Saímos em direção ao carro dele e ele dirigiu até a cidade vizinha, onde havia uma enorme quantidade de campos verdes no verão.
  Saímos do carro em um ponto da cidade que parecia tirado do interior do estado: um campo enorme com uma visão maravilhosa da cidade logo abaixo. E estava vazio, o que não era estranho, já que ninguém gostava de sair de casa em pleno inverno. Os primeiros sinais de neve que caíra na noite anterior já estavam sumindo, mas continuava tão frio quanto.
  Caminhamos até um ponto e nos sentamos. Percebi que ele estava com uma sacola nas mãos, e quando começou a tirar as coisas de lá de dentro, entendi o que ele queria fazer.
  - Piquenique! - eu disse feliz, quase pulando no lugar em que estava. Nunca havia feito um piquenique antes.
  Ele riu e continuou tirando as coisas de dentro da sacola. Sanduíches naturais, chocolate quente dentro de uma garrafa térmica, bolachas e salgadinhos.
  - Quase pensei que íamos fazer um lanche saudável até ver isso - apontei pro salgadinho.
  - Se não tivesse um pouco de besteiras, não seria um piquenique perfeito - ele falou com um sorriso.
  Comemos enquanto olhávamos pra cidade lá embaixo, e o frio passou um pouco quando tomamos o chocolate quente. Quando acabamos, começamos a conversar sobre as pessoas da escola e relembrar o que acontecia lá. Ele também não gostava dos alunos, e só falava mal. Eu ri muito.
  - E aquela vez que aquele menino que eu não lembro o nome pediu pra namorar com você na rádio da escola? - ele disse, gargalhando. Eu ri também.
  - Ah, o Lúcio, aquele idiota.
  - Pior mesmo foi a música que ele dedicou pra você - ele riu mais ainda e eu o acompanhei, lembrando da música velha, cheia de saxofones e outros instrumentos que eu não sei o nome. A música era horrível.
  - Ele até fez um poema pra mim - eu disse e coloquei a mão no rosto, como se estivesse com vergonha. Ele riu e puxou a minha mão.
  - , flor do meu jardim, meu gramado sem capim, minha rosa sem espinhos... Meu coração palpita por você - ele imitou o ridículo poema exatamente como ele fora feito, ainda segurando a minha mão - Diga que também me ama e te ensinarei tudo o que sei - continuou, tentando conter o riso. - Me dê seu coração, que eu te darei o meu...
  - Ok, chega, chega! - eu gritei, interrompendo ele e rindo muito. Ele ria tanto que estava ficando vermelho. Mas uma de suas mãos ainda segurava a minha.
  Começamos a conversar novamente e contei a ele mais sobre o e a . Combinamos de passar na casa do qualquer dia pra jogar vídeo game ou fazer qualquer outra coisa, apenas pra ter a oportunidade de conhecer duas das pessoas mais importantes na minha vida.
  Ficamos um tempo em silêncio então, observando o sol se pôr.
  - Eu e minha mãe vínhamos aqui quando eu era mais novo - ele disse de repente, e o tom de tristeza em sua voz me assustou. Olhei pra ele enquanto ele continuava a falar. - Gostávamos de vir aqui no inverno... Não tinha muita gente e sempre fazíamos um piquenique. Eu contava a ela como estava indo na escola, ela me falava sobre o trabalho... Era bom. - terminou, me olhando nos olhos.
  - E por que vocês não vêm mais? - perguntei.
  - Eu... Eu comecei a andar com uma turma que não era, digamos, uma boa influência. - Ele disse, voltando a olhar pra frente. - Então comecei a achar uma idiotice perder meu tempo vindo aqui com ela nas férias de inverno se eu podia estar com eles, entende? - ainda não me olhava, então esperei que falasse mais alguma coisa. - É impressionante o que as "amizades" erradas podem fazer com as pessoas. - concluiu, fazendo aspas com as mãos, e pareceu esperar que eu falasse algo.
  - E você continua, hmm... Andando com essa turma? - perguntei receosa.
  - Não sei - ele disse, mais descontraído - Só se eu puder contar você como má influência.
  - É sério - Eu disse, tentando não achar graça na brincadeira. - Você ainda anda com essa turma? - perguntei, pensando que talvez ele tivesse passado um tempo com eles nos dias que não foi à minha casa.
  - Não. – respondeu, voltando ao tom que usava antes - Mas você queria saber quem fez aquilo comigo, lembra? O dia do beco? - olhou de verdade pra mim pela primeira vez desde que começou a contar, e então eu entendi.
  - Por que eles estão fazendo isso com você? - eu perguntei de forma autoritária, incrédula e um pouco aborrecida por achar isso tão errado.
  Ele me olhou como se estivesse ponderando se deveria continuar me contando ou não. Percebi que ele não havia contado isso pra mais ninguém e que tinha sido por isso que ele havia me levado até ali.
  - Eu estou devendo um dinheiro pra eles... Muito dinheiro. - acrescentou, como se isso fosse me fazer entender algo que ele não disse - E eu não tenho como pagar tudo. Eu já paguei uma parte, mas ainda falta muito pra minha dívida acabar.
  - E por isso eles batem em você? - eu perguntei, agora definitivamente aborrecida. De verdade, quando cheguei à essa conclusão, minha vontade foi levantar dali e esmagar cada um dos integrantes dessa "turminha" com minhas próprias mãos.
  - Eles batem em mim porque a minha dívida está aumentando ainda mais, é como uma forma de... mostrar que as coisas podem piorar se eu não pagar logo. - explicou e me olhou nos olhos. - Um deles ameaçou a minha mãe e, bom... Eu acabei entrando em uma briga com ele. Aquele dia no beco foi a "vingança" dos caras - ele disse com raiva e quando olhou pra frente de novo, consegui ver nitidamente o machucado no olho dele e fiquei com ainda mais raiva - E eles disseram que se eu não arrumar o dinheiro até o mês que vem, eles vão cobrar dela. Você entende o que isso quer dizer? - perguntou.
  - Acho que sim - falei, tomando aquilo como uma ameaça, o que obviamente foi o que achou que era. - Eu quero te ajudar. A gente pode conseguir esse dinheiro! - falei.
  - Eu vou conseguir. - ele garantiu, apontando pro carro. - Está quase vendido - falou triste. - Mas achei que não devia te esconder mais nada...
  Olhei para o carro por um momento, então olhando de volta para e lembrando de tudo o que eu já ouvira sobre ele na escola. Os boatos sobre ele ser um tanto... sinistro eu sabia que não eram exatamente verdadeiros. Já o conhecia o suficiente pra entender que ele tratava as pessoas mal no começo em uma forma de afastá-las, se proteger, não sei. Mas esses não eram os únicos boatos sobre ele.
  - O que foi que você comprou deles pra estar devendo tanto? - perguntei, já sabendo qual deveria ser a resposta.
  Ele passou as mãos pelos cabelos e se balançava pra frente e pra trás, suas mãos tremiam e eu não tive dúvida do que ele tinha.
  - Eu não quero te envolver nisso, não quero. Eu tenho medo de que se eles descobrirem sobre você, te usem pra me ameaçar. E eu não posso deixar nada acontecer com você - falou desesperado - Mas eu não consigo parar, eu não consigo parar! - olhava pra mim agora, e eu não sabia o que fazer. - Eu sei que o que eu estou fazendo é errado, eu sei, e eu quero parar! Mas eu não consigo - ele disse, com grande esforço, com os olhos vermelhos e o rosto molhado pelas lágrimas que agora deixava cair. - Você disse que queria me ajudar - ele continuou, pegando a minha mão. - Então me ajuda, por favor? - eu sabia que não tinha como dizer não, mesmo que eu quisesse. Meu Deus, como era horrível vê-lo daquela forma! - Por favor, ! Eu não aguento mais decepcionar a minha mãe, eu não aguento mais essa situação e eu preciso de ajuda, mas eu não sei a quem pedir. Eu preciso de você!
  Desistindo de me fazer de forte, passei a mão por aqueles lindos cabelos, agora embaraçados, e me esforcei pra não chorar junto com ele. Coloquei um dedo em seus lábios para impedi-lo de falar novamente. Não precisava ouvir mais nada. Simplesmente não aguentava vê-lo daquela forma. Faria qualquer coisa para colocar de volta aquele lindo sorriso no rosto dele.
  Lentamente, me aproximei dele e passei os braços por cima de seus ombros, aproximando os corpos em um primeiro abraço. Um primeiro abraço há muito tempo esperado. Senti as mãos dele em minha cintura, e me senti bem, de um jeito estranho, mas bom.
  - Vai ficar tudo bem, . - sussurrei em seu ouvido - Eu vou te ajudar.
  - Promete? - o ouvi perguntando, sentindo a respiração quente dele em meu pescoço - Promete que não vai desistir de mim? - Ri de leve, sem humor nenhum.
  - Prometo que vou te ajudar - respondi - E não vou sair de perto de você. Só se você não me quiser por perto. - dei um beijo na bochecha dele e me afastei. Peguei-o pela mão, do modo como minha mãe fazia comigo quando era pequena e o tirei dali em silêncio. Ninguém precisava saber o que havia acontecido. Não importa o que pensam nem o que dizem a respeito dele. O que importa era que ele estava ali, ao meu lado, segurando minha mão e querendo a minha ajuda.
  - Vai ficar tudo bem. Eu sei que vai. - eu disse baixinho, mais para mim mesma do que para aquele garoto alto andando ao meu lado.

  É realmente incrível o que amizades erradas podem fazer. Incrível o poder das más influências, daqueles que só queriam o mal dos outros e, mais incrível ainda, era o poder que as drogas tinham sobre uma pessoa. Mas eu não as deixaria destruir a vida de , como já havia destruído tantas vidas. Não, eu cuidaria dele. Ainda não sabia como, mas cuidaria.
  Eu o tiraria dessa.

Capítulo 10

  Decidi que o melhor que podia fazer por seria distraí-lo pelo máximo de tempo que conseguisse, pra evitar que ele sentisse vontade de se drogar novamente. Ele me prometeu que continuaríamos nos vendo e que ele não me abandonaria, assim como eu não pretendia abandoná-lo. Aquela noite, deitada em minha cama pensando em algo que fosse suficientemente bom para distraí-lo, relembrei grande parte da nossa conversa durante a tarde, enquanto o meu sono não vinha.
  “Eu dirigia o carro dele pela segunda vez e ainda não tínhamos trocado sequer uma palavra, enquanto ele tentava se controlar e parar de chorar. Percebi como deveria ter sido difícil pra ele se mostrar daquele jeito pra mim e soube quase de imediato que ele se sentiria com vergonha depois, por isso prometi a mim mesma que não o deixaria se sentir assim.
  Quando chegamos à minha casa, mandei-o subir até o meu quarto e fui à cozinha buscar um copo de água pra ele e tentar achar o que falar. Como se eu fosse encontrar palavras na cozinha.
  Quando me viu entrar no quarto, ele sorriu e estendeu a mão pra pegar o copo de água. Percebi que ele já parecia melhor.
  Sem nenhum motivo aparente, pensei no meu pai e no que ele diria se soubesse que eu e o garoto-problema estávamos sozinhos no meu quarto. Afastei esse pensamento e me sentei na cama. Dei umas batidinhas no lugar à minha frente, sinalizando que queria que ele se sentasse ali. Ele se sentou e, confirmando o que eu havia pensado que ele faria, disse:
  - Me desculpa, não devia ter desabado daquele jeito, eu não costumo fazer isso...
  - Tudo bem - falei, acariciando a mão dele que estava próxima a mim - Você não tem que aguentar tudo sozinho. E eu fico feliz de saber que você me escolheu pra compartilhar isso - fui o mais sincera que pude, falei o tempo todo olhando em seus olhos e ele assentiu, sorrindo. Como alguém podia ser tão lindo?
  - Você é linda, sabia? - ele disse, me assustando e rindo depois de ver a minha cara de espanto - É serio! - percebi que ele estava corando um pouco e tentei ignorar esse fato, mas achei bonitinho - E se você não quiser - ele continuou, parecendo reunir toda a força que tinha -, não precisa me ajudar, não é sua obrigação fazer isso.
  Suspirei e me levantei. Caminhei até a janela e pude sentir seu olhar em mim.
  - Eu não preciso te ajudar e não, não é minha obrigação fazer isso - comecei e me virei lentamente pra ele - Mas eu quero te ajudar.
  Ele sorriu triste e se levantou também. Parou ao meu lado e olhou pela janela lá fora. Depois de um tempo, apontou pra uma casa em frente a minha.
  - Eu morava ali, sabia?
  Olhei pra ele, incrédula.
  - Quando?
  - Morei ali até os 10 anos. Morava com o meu avô e com a minha mãe, mas depois que ele morreu, ela não quis mais morar aqui - ele fez uma pausa e voltou a olhar pra mim - Eu me lembro de quando você se mudou pra cá. Era inverno e eu tinha uns 8 anos. Estava fazendo um boneco de neve na frente de casa quando vi você chegando com o seu pai.
  Sorri, me lembrando vagamente daquele dia. Então era por isso que, mesmo antes de nos tornarmos amigos, parecia saber tanta coisa sobre mim. Ele deu uma risada e continuou.
  - Você estava brava, e muito fofa, devo dizer, com as bochechas vermelhas e a carinha de irritada - ele riu mais uma vez.
  - Eu me lembro - falei - Eu não queria vir pra cá - Senti uma nostalgia enorme se apossando de mim.
  - É, e você bateu o pé e disse que a casa era feia e que não ia entrar nela. Detalhe: a sua casa é a mais bonita da rua! - ele me olhou sorrindo e balançando a cabeça negativamente, como se não aprovasse a birra que eu havia feito aquele dia - Você ficou bem uns dez minutos brigando com o seu pai dizendo que não ia entrar...
  - Como você ainda se lembra disso? - eu perguntei, achando graça da coincidência.
   deu de ombros, parecendo meio constrangido, como se lembrar daquilo fosse algo do qual ele se sentisse envergonhado de falar.
  - Porque naquela época, eu achava as garotas chatas e sem graça. Na escola, eu fugia delas - ele disse, com um sorrisinho sapeca - Mas quando te vi, não sei por que, quis ficar perto de você. Acho que porque mesmo quando você era mais nova, você era uma menininha decidida - ele riu - eu gosto de pessoas decididas.
  Eu ri também, sentindo algo se remexendo loucamente no meu peito.
  - E você só acabou de me provar que continua a mesma – acrescentou, virando a cabeça em minha direção.
  - Me diz o que eu posso fazer pra te ajudar - pedi, ficando de frente pra ele, sentindo minhas mãos coçarem de vontade de tocá-lo.
  - Você já me ajuda, - ele sorriu ao ver a minha cara de dúvida - Você me distrai, me faz querer passar mais tempo com você do que... Fazendo outras coisas. E eu parei um pouco... Diminuí a frequência, entende?
  Ele me olhou nos olhos e entendi que estávamos na mesma situação, que eu também havia diminuído a frequência com que me machucava porque ele me fazia bem. Sorri com o pensamento de que eu fazia bem a ele.
  - Não sei... Mas acho que se você me deixar ficar mais tempo com você... - ele começou, constrangido - Já ajuda.
  - Claro - falei rápido demais e ri - por mim tudo bem.
  - Se eu soubesse que ser seu amigo ia me fazer tão bem, teria começado nossa amizade antes - ele falou rindo e bagunçando o meu cabelo.
  Ri junto com ele, enquanto sentia um aperto no peito.”

  Soube o que devia fazer pra ajudá-lo. Precisava mantê-lo distraído por tempo suficiente... Não poderia deixar brechas. "Você pode fazer isso... Não vai ser nenhum sacrifício". Sorri com meus pensamentos, até ouvir uma vozinha chata me dizer: "ele só quer a sua amizade, idiota".
  O sorriso se desmanchou e senti vontade de chorar. "Quer saber?" respondi "estou muito satisfeita em ter a amizade dele".
  Percebi que já estava adormecendo e me entreguei ao sono, mas ainda pude ouvir a vozinha dizer: “Porque isso é tudo o que você pode ter... Amizade”.

Capítulo 11

  Os dias se passaram e eu e fizemos tantas coisas que eu me sentia exausta. Quando meu pai voltou de sua viagem, que durou mais que o esperado, falei com ele sobre , porque agora ele nos veria muitas vezes juntos e eu não queria que nada ficasse mal entendido, então procurei explicar a ele o que estava acontecendo, sem citar, é claro, toda a história de com as drogas.
  Eu e ele já havíamos limpado a minha garagem em um dia e tinha tanta tralha lá dentro que até agora não consigo entender como aquilo tudo cabia lá. Outro dia limpamos os fundos da minha casa e no outro ajudamos a mãe dele com a mudança. O aluguel do apartamento deles havia aumentado e o dinheiro que ela usava pra pagar era o dinheiro do aluguel da casa do avô de . Como a casa não era alugada pra ninguém há meses e eles não tinham como manter duas casas, se mudaram de volta pra minha rua. Agora éramos vizinhos e eu estava tentando não me empolgar demais com isso, mas admito que as coisas ficaram bem mais fáceis.
  Ficamos entretidos com a mudança durante uns bons três dias, revezando entre trazer as coisas e arrumá-las na casa e arrumar a própria casa, que não estava lá essas coisas. Nos divertíamos muito, por mais incrível que pareça, falando besteiras e rindo das fotos de quando era bebê que a mãe dele ainda guardava.
   vendeu o carro e pagaria a dívida no sábado, véspera de Natal. Ainda não sabia o que ele disse pra mãe dele sobre o carro, porque ele não comentou nada comigo, mas não acredito que tenha dito a verdade.
  Insisti em ir com ele entregar o dinheiro, mas ele não deixou e todas as vezes que eu tocava no assunto, ele fugia sem nem disfarçar.
  Já era sexta feira e eu acordei um pouco tarde demais. Troquei-me e comi alguma coisa. Quando terminei dei, um beijo no meu pai e disse que ia ver o .
  Atravessei a rua e toquei a campainha de sua casa, mas ninguém me atendeu. Toquei de novo e nada. A mãe dele devia estar trabalhando e o , provavelmente dormindo. Tentei abrir a porta e estranhei o fato dela estar aberta.
  - ? - chamei. Ninguém me respondeu.
  Subi as escadas e parei na frente do quarto dele. Achei que não devia entrar, porque ele poderia estar vestido com suas roupas íntimas e tudo o mais e seria constrangedor, mas eu estava com uma sensação estranha, e deixei essa preocupação de lado. Com meu coração acelerado sem que eu nem soubesse o porquê, abri a porta devagar, tentando olhar lá dentro.
  - , a porta estava aberta e...
  Parei quando o vi jogado no chão, com as mesmas roupas que ele usava quando saiu da minha casa no dia anterior.
  Corri até ele e percebi que ele não estava machucado. Tentei acordá-lo, mas ele não se mexia. Estava entrando em pânico quando percebi o cheiro estranho que eu havia ignorado até então e que emanava dele.
  - Ah não... - eu resmunguei, sacudindo-o desesperada, querendo que ele acordasse e dissesse que estava bem. Coloquei os dedos em seu pescoço, tentando sentir pulsação. Lenta, muito lenta. Ele respirava pesadamente e eu fiquei com medo, não sabia o que fazer. Não tinha o menor preparo praquele tipo de situação, e chamar uma ambulância poderia complicar mais a situação dele. Sua mãe descobriria sobre as drogas, ele seria provavelmente interrogado e não estava em condições de arrumar mais problemas. No entanto, eu não podia não fazer nada.
  Estava começando a me sentir enjoada, então me permiti sentar ao lado dele e colocar a cabeça entre os joelhos, respirando fundo tentando acabar com o enjoo e organizar meus pensamentos pra decidir o que fazer.
  - ? - o ouvi sussurrar de repente e dei um pulo.
  - Graças a Deus - disse desesperada, olhando pra ele, que parecia se esforçar pra manter os olhos abertos. - Você consegue levantar? - perguntei infeliz, lembrando que já havia feito essa pergunta pra ele.
   não respondeu e tentei levantá-lo. Levei-o até o banheiro e o coloquei embaixo do chuveiro, rezando pra que a água gelada o fizesse melhorar. Liguei o chuveiro e o deixei lá, de roupa e tudo, e ele pareceu acordar. Encostei-me na parede oposta, longe da água, tentando me acalmar, mas me encarava com uma expressão triste que me fez sair dali.
  Peguei uma toalha e entreguei a ele enquanto separava algumas roupas. Depois que lhe entreguei as roupas e recebi um olhar tristonho, saí do banheiro, fechando a porta pra esperar ele se trocar. Voltei para o quarto e abri as janelas, querendo que aquele cheiro fosse embora quando o ouvi entrar no quarto e se deitar de bruços na cama, com os cabelos molhados. Ele olhou pra mim e eu me ajoelhei ao lado dele.
  - Desculpa – sussurrou pra mim - eu não consegui...
  Levantou a mão e tocou o meu rosto, secando uma lágrima que eu não percebi que havia deixado cair.
  - Eu não consegui - repetiu, como uma criança.
  - Tudo bem - eu disse. Fiz um carinho rápido nos cabelos dele e o vi fechar os olhos - Descanse. Vou preparar algo pra você comer - disse, me levantando.
  - Não! - ele quase gritou e agarrou a minha mão. - Fica aqui comigo, por favor.
  Sentei ao lado dele na cama e ele apoiou a cabeça no meu colo. Enquanto eu mexia em seus cabelos, o vi suspirar e fechar os olhos.
  "Droga", pensei triste, desejando que se eu fechasse os olhos e os abrisse novamente, percebesse que ainda estava deitada na minha cama, preparada pra um dia feliz com um diferente daquele que, obviamente, não teria voltado a se drogar.

  Ele acordou três horas depois, parecendo melhor, e quando eu disse que ia pra minha casa, ele pediu que o esperasse.
  Tomou outro banho e comeu alguma coisa. O silêncio entre nós estava me consumindo e eu não sabia o que dizer. Muito menos o que sentir.
  - Desculpa - ele quebrou o silêncio quando nos sentamos no sofá da sala. - eu não queria fazer isso, mas eu estava nervoso, achei que podia me acalmar um pouco... Desculpa!
  - Não me peça desculpas – falei, toda a preocupação de pouco antes começando a se transformar em irritação - Você não fez nada pra mim, .
  - Te decepcionei. - ele falou com a cabeça baixa.
  - Decepção não é nada comparada com o que você fez com você mesmo! - retruquei friamente.
  O silêncio se prolongou e eu queria ir embora. Sentia-me decepcionada, frustrada, um lixo. Por um momento, entendi o que a sentia quando descobria que eu tinha me cortado de novo: impotente, como se todos os meus esforços e discursos não tivessem valido de nada. Afastei esses pensamentos, porque só pioravam tudo.
  - Não quero te levar porque não sei o que eles podem fazer com você. - falou, de repente, sentado no sofá em frente ao que eu estava e passando as mãos pelos cabelos, se referindo aos traficantes que estavam cobrando ele.
  - Você acha que eles podem fazer algo? - perguntei receosa, me esquecendo de ser fria por alguns momentos.
  - Não sei, mas não vou arriscar - ele respondeu decidido.
  - Não quero que você vá. Não sozinho. - eu disse, deixando de lado a ideia de me fazer de indiferente. Não daria certo mesmo.
  - Eu não vou te levar, nem adianta, já conversamos sobre isso. - ele falou em um tom definitivo, como se colocasse um ponto final na conversa.
  - E se acontecer algo com você? - perguntei, me levantando - E se eles te baterem de novo ou fizerem algo pior? Eu quero ir! - ele ia protestar, mas eu gritei, fazendo ele se calar - Você me deve isso, ! Eu tentei esse tempo todo te ajudar e no fim você simplesmente esqueceu tudo, foi lá e se drogou de novo! - ele fez uma cara tão triste que quase me arrependi do que disse. Quase. - Não pense que se você mudar de assunto, eu vou esquecer isso. - fiz uma pausa, esperando que ele protestasse, mas ele não o fez. - E se acontecer algo com você? - repeti, em um tom de voz mais baixo, que demonstrava a minha insegurança.
  - Se acontecer algo comigo - ele me olhou nos olhos, também se levantando -, não quero que aconteça com você também.
  - Então pode mesmo acontecer algo? - falei irritada, apontando um dedo na cara dele - Você me garantiu que eles não fariam nada!
  - Eu sei - ele gritou - Eu sei o que eu falei, mas eu não tenho mais tanta certeza!
  - Então você devia ter me dito antes! - gritei também - Eu tinha o direito de saber, não acha?
  - Saber do quê? - com a nossa gritaria, nem ouvi a mãe dele chegar em casa, e agora ela nos olhava curiosa.
  - Nada, mãe! - disse, com raiva, virando-se de costas pra mim.
  - É, não é nada! - eu falei, ainda olhando pra ele. Ou pras costas dele. - Nada com o que eu ou a senhora devêssemos nos preocupar - completei com amargura.
   se virou de volta pra mim, a raiva parecendo abrandar.
  - ... - ele chamou.
  - Já está tarde - eu disse, embora não fossem nem oito horas - Tenho que ir pra casa. Boa noite.
  Dei um beijinho na Sra. e tentei sorrir, mas tenho certeza que tudo o que consegui foi fazer uma careta.
  Fechei a porta e atravessei a rua, sentindo o ar frio do início da noite bater em meu rosto. Entrei em casa e meu pai estava jogado no sofá, assistindo TV.
  - Mas já...? - perguntou. Sem responder, subi em direção ao meu quarto e bati a porta.

Capítulo 12

  Senti-me horrível. Joguei-me na cama e tentei não pensar. Sabia onde aquilo acabaria e eu não queria que acabasse dessa forma.
  "Não pense!", dizia pra mim mesma, mas não adiantava.
  Eu estava me sentindo forte, tão forte com ele do meu lado aquele tempo todo. Fazia muito tempo que eu não cedia àquela minha vontade idiota, doentia... Por causa dele.
  Sentei-me, tentando secar as lágrimas, mas logo já estava correndo para o banheiro. Encostei-me na parede e ainda tentei resistir. Já havia resistido por tanto tempo. Nós havíamos resistido por tanto tempo! Mas depois de saber que ele não aguentou, me senti encurralada, como se segurasse a ponta de uma corda onde ele havia soltado o outro lado. Foi quando percebi que estava o usando como apoio, me agarrando ao fato de ele ter resistido às drogas por tanto tempo que o mínimo que eu deveria fazer seria resistir àquela mania doentia de me mutilar constantemente, vezes e vezes seguidas.
  Mas ele se rendeu, pensei, por que tenho que permanecer forte? Por que tenho que resistir?
  Me abaixei e vasculhei o fundo do armário, procurando a minha velha amiga/inimiga que eu escondia em uma caixinha. Quando achei, me encostei de volta na parede e levantei a manga da minha blusa. Olhei para as cicatrizes dos cortes antigos tentando não pensar no fato de que repeti-las era uma forma de dizer quão fraca eu era.
  Posicionei a lâmina em um ponto sem cicatrizes e, depois de respirar fundo e contar mentalmente até três, afundei-a em minha própria carne e, partindo daquele ponto, puxei a lâmina com força por pelo menos 3 centímetros de minha pele, deixando um caminho marcado com sangue no local.
  A dor me invadiu de imediato e eu senti aquele pequeno alívio antigo. "Doentio", pensei, posicionando a lâmina novamente, tentando enxergar através das lágrimas.
  Eu havia conseguido. Não pensava em mais nada, só na dor do que eu acabara de fazer. Só naquela dor, mais nenhuma outra. Porque naqueles breves momentos, não havia espaço pra nenhuma outra dor me atingir em cheio, como um tapa na cara muito bem dado. Como a realidade me atingindo em cheio em todos os lugares possíveis.
  Parei depois que fiz o terceiro corte, quando ouvi meu pai gritar de lá de baixo que estava saindo. Pensei ter ouvido vozes lá, mas logo depois ouvi o barulho da porta batendo e então aquela vontade de me mutilar se foi da mesma forma que chegou.
  Comecei a chorar mais ainda e tentei me controlar, aquilo não estava certo. Se eu queria continuar com aquela mania imbecil de tratar a mim mesma, tinha que ao menos ser mulher o suficiente pra não ficar chorando como uma garotinha acanhada depois. Mesmo que eu me sentisse uma garotinha acanhada.
  Sequei o rosto depois de largar a lâmina no chão, indo lavar os cortes. Quando a água entrou em contato com a pele, ardeu tanto que quase gritei.
  - O que você fez? - ouvi atrás de mim e dei um pulo, assustada. Virei e não acreditei que estava vendo parado na porta do meu banheiro, olhando da lâmina no chão para o meu braço ensanguentado, e dali de volta para a lâmina.
  - O que você está fazendo aqui? - gritei e tentei fechar a porta, meio desesperada.
   segurou a porta sem o menor esforço e a empurrou, pra poder entrar no pequeno banheiro do meu quarto.
  Ele me encarou por alguns segundos e a vergonha que senti foi a maior de toda a minha vida. me segurou pelos ombros, parecendo tentar evitar olhar ou tocar no meu braço, e me sacudiu um pouco.
  - ... O que foi que você fez? - ele me olhava incrédulo, mas ainda consegui ver a decepção nos olhos dele, o que me cortou por dentro, mais fundo do que qualquer lâmina poderia ter feito.

  Tentar explicar foi a pior parte. Achei que tinha sido difícil quando a descobriu, mas foi um milhão de vezes pior contar pra ele vendo a decepção em seus olhos aumentar a cada palavra que eu dizia. Tentar explicar para a ele o que eu estava fazendo parecia me corroer por dentro.
  Comecei a andar de um lado para o outro, tentando me acalmar e querendo que ele falasse alguma coisa. Não aguentava mais aquele silêncio. Comecei a pensar que ele sentiria nojo de mim, agora que sabia o que eu fazia comigo mesma. Ou talvez ele sentisse raiva, já que ele foi corajoso e verdadeiro o suficiente pra me contar que usava drogas e eu, idiota como era, além de não ter contado a ele o que eu costumava fazer, tinha feito de novo.
  Ele se mexeu na cama e eu olhei pra ele. Vi ele se levantar, ágil como sempre, e caminhar até a porta, com passos duros e decididos, fechando logo depois de sair. Sem reação, com a boca ligeiramente aberta, entendi o que tinha acontecido. Ele não seria como a , afinal, que ficara do meu lado, mesmo sabendo que eu não fazia o menor esforço pra deixar de fazer o que eu fazia.
  Senti um nó enorme na garganta: estava tudo acabado. Qualquer coisa que estivesse acontecendo entre eu e havia acabado. Não teria nem a amizade dele mais.
  Fiquei parada lá, sozinha, me sentindo menos que um nada, sabendo lá no fundo que eu merecia mesmo aquilo, merecia que ele me largasse daquela forma, até ouvir um barulho na porta e o ver entrar de novo.
  - Você não pode mais fazer isso! - ele esbravejou, indo em minha direção, e eu nem liguei quando ele agarrou os meus braços e me sacudiu rudemente, de tão aliviada que eu estava por ele ter voltado. - Está me entendendo? Não pode! - ele gritava como um louco, e o rosto dele estava de uma cor que eu nem sabia que um rosto poderia ter - Isso é insano, é doentio! Já imaginou que você pode se cortar de um jeito sério? Pegar em alguma veia importante? Você tem que parar com isso! É doentio, é perigoso! - ele repetia, insistente, mas quando o meu alívio por ele ter voltado passou, me permiti pensar com um pouco de clareza.
  - Olha quem fala! - eu ri, me livrando dele, afastando-o com toda a força que eu tinha - Tem noção do que você faz? - o encarei, a raiva explodindo no meu peito. - Eu sei que o que eu faço não é certo, mas quem é você pra me falar que o que eu estou fazendo é perigoso? Acha que se drogar é saudável? - gritei e joguei um travesseiro nele - Eu pelo menos não dependo de ninguém, não apanho de ninguém e não fico devendo pra ninguém! - esbravejei e joguei outro travesseiro na direção dele, mas dessa vez ele saiu do caminho, fazendo o travesseiro bater contra a parede oposta e percebi, com certa satisfação, que ele parecia assustado - Eu não corro o risco de ter um ataque e morrer! - joguei o edredom e já estava pensando quanto tempo levaria até conseguir jogar o colchão naquele rosto bonitinho, sem parar de gritar - O que eu faço é errado, eu sei disso! Sei disso e não me orgulho! E você? O que você pode falar de mim? Você é um hipócrita! - terminei e percebi que lágrimas cobriam meu rosto novame  nte. Minha respiração estava acelerada e eu tentei me recompor. Abaixei a cabeça, secando o rosto, e, para a minha surpresa, logo depois senti braços me envolvendo, em um abraço desajeitado, mas definitivamente um abraço, me puxando pra mais perto, me reconfortando.
  Eu estava nos braços dele.

Capítulo 13

  Estávamos sentados na cama e ainda me abraçava. Ficamos tanto tempo em silêncio, que me assustei quando ouvi sua voz de novo.
  - Não sei se você se lembra do Mike, um loiro alto, repetente e tal...
  - Lembro - eu disse, em uma voz fraquinha.
  - Ele estava na detenção e eu também - não entendi aonde ele queria chegar com aquela conversa, mas escutei, prestando atenção - Não sei o que ele fez, mas eu havia jogado umas bolinhas de papel higiênico molhado no teto do banheiro...
  - Eca! - interrompi, olhando pra ele.
  Ele riu e colocou uma mecha do meu cabelo atrás da orelha.
  - Eu sei - continuou - Sabe como é... Primeiro ano na escola, queria fazer algo pra me divertir, mas...
  - E o seu jeito de se divertir é jogando papel higiênico molhado no teto da escola? - perguntei, com uma sobrancelha erguida e ele considerou por um momento a minha pergunta.
  - Melhor do que jogar travesseiros nas pessoas, não acha? - disse finalmente, rindo - Comecei a achar que você ia querer jogar a cama também!
  Dei um tapa nele e fiz sinal pra que continuasse.
  - Enfim, a inspetora me pegou no ato e me levou até a diretoria. E, além de pegar três dias de detenção, ainda tive que limpar aquela sujeira!
  - Que você mesmo fez... - interrompi novamente, sorrindo.
  - Ok, senhorita Eu-Adoro-Interromper-O-, posso continuar agora? - Ele perguntou, com uma sobrancelha erguida.
  - Só mais uma coisa - falei e ele assentiu, de má vontade, me deixando falar. - Meu pai é foda. - falei e ri da cara dele de indignado.
  - Ele me fez limpar aquela porcaria todinha e você diz que ele é foda? - perguntou, indignado.
  - Sim, você mereceu! - falei com um sorriso e ele bagunçou meu cabelo.
  - Tá, tudo bem. Agora eu já posso continuar?
  - Sim, senhor.
  - Ótimo. - ele disse, sorrindo e me olhando de lado - Bom... Ele estava na detenção e eu também. Começamos a conversar e logo fizemos amizade. Ele me chamou pra ir a uma festa na casa dele e eu fui. Lá rolava de tudo o que você possa imaginar - ele olhou pra mim de um jeito estranho, mas continuou. - Já tinha ido a festas assim antes, mas essa era bem pesada. O Mike me ofereceu um cigarro. Era maconha, claro, e eu não queria parecer um idiota perto da turma dele, então aceitei - ele sacudiu a cabeça, como se estivesse pensando que idiota mesmo foi ter aceitado - Depois do primeiro, fumei o segundo, o terceiro e assim por diante. Eu não estava acostumado, fiquei mal e então o Mike me disse pra dormir na casa dele, porque não ia ser legal minha mãe me ver naquele estado. Depois que acordei, achei que tinha ganhado um ótimo amigo, ele não queria que eu me desse mal.
   parou de falar por um momento e eu esperei. Suspirou audivelmente e, de repente, começou a falar tudo muito rápido, parecendo meio nervoso:
  - Pensei em não fazer mais isso, entende, mas comecei a sair com a turminha dele e sempre acabávamos do mesmo jeito, jogados na rua, chapados. Eu era o excluído no colégio, me senti bem por ser aceito entre eles. - assenti quando ele olhou pra mim, esperando alguma reação, e ele continuou - Passei da maconha pra cocaína, o Mike sempre me oferecia e eu aceitava. Percebi que não conseguiria mais parar quando eu comecei a pedir pra ele e não mais esperar que alguma festa aparecesse pra que eu tivesse a desculpa perfeita pra usar drogas. Quando o que eu tinha em casa acabou, fui atrás do Mike. Até então, ele não me cobrava nada, mas naquele dia ele disse que eu tinha que ir até o fornecedor com ele e ajudar a pagar se quisesse mais. O lugar era bem tenso, na pior parte da cidade, mas eu já estava lá mesmo, então fui até o fim - ele apertou a minha mão e começou a falar ainda mais rápido, quase sem pausas, como se quisesse acabar logo com aquilo. - Eu voltei lá mais vezes, mas não tinha dinheiro suficiente. Eu aumentava a quantidade e eles o preço. Começaram a cobrar mais caro do que deveria ser. Roubei a minha própria mãe pra comprar mais droga - ele olhava pra frente, como se estivesse perdido em lembranças ruins. E estava mesmo - Ela desconfiava, eu negava, a gente brigava... Tentei arrumar um emprego pra pagar o que eu já devia, eles abriram uma espécie de conta pra mim e ela só aumentava. Não parei em nenhum emprego, eu me irritava, xingava as pessoas, era grosso e quebrava tudo nas piores situações - ele me fitou, envergonhado, parecendo só se lembrar agora da minha presença. Sorri levemente, encorajando-o a continuar - A minha mãe ficou sabendo dessas coisas e teve que pagar os estragos que eu fazia. Nessa época, os poucos colegas que eu tinha na escola se afastaram de mim, não queriam mais papo. Briguei sério com a minha mãe depois que o dinheiro do aluguel sumiu e ela me acusou.
  Por um momento, pareceu que ia se levantar e andar pra lá e pra cá como estava fazendo alguns minutos antes, mas continuou ao meu lado.
  - Saí de casa e não tinha pra onde ir. Fui pra casa do Mike e dormi lá, fiquei uns três dias, mas ele me disse que não podia mais ficar, que ele não era a minha mãe e que não tinha nada a ver com a minha vida e meus problemas. Briguei com ele e saí de lá arrasado, sem saber o que fazer. Depois disso fiquei uns dias na rua, que nem mendigo, e sempre drogado, usando tudo o que eu havia pego na casa do Mike. Voltei pra casa quando não aguentei mais. A minha mãe estava horrível - pude ouvir o claro arrependimento na voz dele, mas ele não parou, continuou como se estivesse decidido a terminar, agora que tinha começado - Entende, ela... Ela tinha chamado a polícia pra me procurar e tudo... No outro dia o Mike apareceu, disse que a polícia tinha ido à casa dele me procurar e acharam drogas lá. Ele não estava em casa, mas o seu pai havia sido preso. Senti-me pior e não sabia o que fazer. Começaram a me ligar, me cobrando e um dia um dos caras foi lá em casa, atrás da minha mãe - ele olhou pra mim e eu entendi o que ele quis dizer. Ele bateu no cara que cobrou a mãe dele e aquele dia que o encontrei caído no beco tinha sido a vingança dos caras. – Foi quando isso aconteceu que eu me dei conta de tudo o que estava fazendo com a minha vida. Mas mesmo depois de tudo isso - ele concluiu, finalmente se permitindo falar mais devagar, para o meu alívio - Depois de ver a decepção nos olhos da minha mãe, de ouvi-la dizer que não sabia o que fazer comigo, depois de mentir pra ela todos os dias e me odiar por isso, mesmo depois de passar dias como um mendigo, de pensar que iam me matar, eu ainda queria mais. Arranjei com um velho amigo e tenho usado aos poucos, com medo de que acabe, mas começou a ficar difícil. Os traficantes me ameaçaram, cobraram bem mais do que o que eu devia pelo atraso, eu não sabia o que fazer... Então você apareceu. - ele fez uma pausa, suspirou e recomeçou - Depois que eu te contei, resisti por muito tempo. Até ontem, pra ser mais exato. Mas então eu me senti um merda. Estava com medo, tinha vendido meu carro e não queria mais ver aqueles caras. Queria relaxar, me desligar um pouco do mundo. Depois que saí daqui, andei por aí sem rumo, só querendo pensar mesmo, eu juro, mas encontrei com o velho amigo de quem eu falei, ele acabou me levou pra uma festa do outro lado da cidade... Alguém deve ter me trazido pra casa, não sei, porque só me lembro de ter chegado até a festa, de me oferecerem droga, eu ter aceitado e, depois, eu apaguei. E lembro, claro, de que quando acordei, te vi do meu lado - por um momento, ele me olhou nos olhos com uma intensidade enorme - você estava lá quando eu mais precisava de ajuda.

  Ficamos muito tempo em silêncio. Fiquei pensando em tudo o que ele passou, tudo o que ele renunciou por causa das drogas. Encarei-o e ele retribuiu meu olhar. Houve um trato silencioso entre nós: não falar mais sobre aquilo. Era doloroso demais.
  Senti que devia a ele uma explicação também, não só porque ele tinha me contado sua história inteira, mas porque eu havia escondido a minha história por tempo demais, e me surpreendi quando percebi que queria contar a ele, desabafar como ele acabara de fazer comigo.
  Passei a mão no meu braço e me preparei pra contar, mas percebeu isso e colocou um dedo nos meus lábios.
  - Você não precisa se sentir na obrigação de me contar, .
  - Eu quero contar. - falei de um jeito estranho, porque o dedo dele ainda estava na minha boca. Ele riu e abaixou a mão.
  - É serio, não precisa...
  - Eu quero contar - repeti - Vai me ouvir ou não? - indaguei de um jeito engraçado. Pra minha surpresa, ele colocou uma mão na minha nuca, me puxando pra perto, colando a minha testa na dele.
  - Você sabe que não precisa. - sussurrou.
  Percebi que tinha prendido a respiração quando respirei fundo, sentindo o cheirinho dele. Meu coração batia tão forte que não me surpreenderia se pudesse ouvi-lo.
  - E-eu quero contar... - Falei. Ele sorriu e me deu um beijo na testa.
  - Então conta.
  Comecei pela parte mais difícil. Minha mãe. Contei a ele que ela havia traído o meu pai, por isso se separaram. Que ela foi embora de casa sem mais nem menos, quando eu tinha seis anos, e ficou meses sem dar notícias. Contei como meu pai ficou destruído e que havíamos nos mudado porque ele não queria ter mais nenhuma lembrança relacionada a ela. Disse que eu não queria vir pra cá porque ainda tinha esperanças de que ela aparecesse na nossa antiga casa, pra ficar, e queria estar esperando por ela. E que depois de quase um ano sem notícias, ela entrou em contato, disse que estava vivendo com seu amante e que estava grávida.
  - Meu pai pareceu definhar – contei, triste - ele bebia muito e descontava em mim às vezes. Não me batendo, é claro que não, mas com indiferença. Como se não me quisesse por perto pelo simples fato de eu ser filha dela. Até hoje não sei se ele se recuperou totalmente. Minha mãe aparecia às vezes, dando uma de preocupada, me perguntando sobre a escola e os garotos. - nessa parte, ele prestou bastante atenção. Talvez tenha percebido a mágoa e a raiva na minha voz. - Conforme fui crescendo, entendi melhor as coisas e comecei a me culpar por ela ter ido embora. Comecei a achar que a vida era injusta com o meu pai, que nunca fez nada de errado. Ele melhorou um pouco e então começamos a fingir que nada havia acontecido, não tocávamos no nome dela. Mas eu ainda me sentia culpada, sempre me senti. E o meu pai nunca disse o contrário. - assim como ele fizera, comecei a falar rápido demais. A vontade de acabar logo com aquela história me dava tempo apenas de respirar, antes de recomeçar a contar - O tempo passou e eu me acostumei a ser sozinha. Passava muito tempo em casa, sem ninguém. Meu pai arranjava um milhão de coisas pra fazer e eu percebi que era pra se distrair, pra não pensar nela. Sentia-me muito sozinha às vezes, não tinha amigos na escola e o único que eu sabia que podia contar era o , mas ele morava em outra cidade. Então teve uma época que cansei de ser forte. Chorava todas as noites, minha vida era uma bagunça, minha mãe não me queria, meu pai provavelmente estava pior que eu e eu não sabia o que fazer pra mudar isso. Comecei a voltar a raiva que eu sentia do mundo pra mim. - Eu não olhava pra . Era mais fácil contar como se aquilo tudo fosse um monólogo idiota e, sinceramente, tinha medo da reação dele - No começo, fazia cortes pequenos e percebi que pensar neles, na dor que eles causavam, me distraía, eu não pensava tanto em tudo o que eu queria mudar e não conseguia. Aliviava. Eu sei, é doentio - acrescentei, quando ele se mexeu desconfortável ao meu lado – Mas é a pura verdade. Bom... Então me mudei pra nossa escola e as coisas melhoraram um pouquinho porque conheci a . Mas ela já estava no último ano e eu tinha medo que ela fosse como todas as outras coisas da minha vida: passageira. Ela iria se formar, iria pra uma faculdade e iria me esquecer. No meio do ano, o se mudou pra cá, então as coisas ficaram realmente boas. A única coisa ruim é que eles não se entendiam, não conseguiam ficar muito tempo juntos perto um do outro porque sempre brigavam.
Acabei sorrindo em meio às lembranças. A história de e , essa sim valia à pena ser contada. Quando percebi que tinha parado de falar, voltei a me concentrar pra terminar aquilo logo.
  - Tentei mostrar a eles que não era tão ruim ficarem juntos e então eles se tornaram amigos e tudo ficou perfeito. Mas então eles começaram a namorar - eu disse, como se isso tivesse sido a coisa mais trágica que aconteceu na minha vida. Quando ouvi minha própria voz dizer aquilo, soltei uma risadinha nervosa, antes de continuar - Fiquei muito feliz por eles, de verdade, porque eles realmente são perfeitos um pro outro e eu percebi que ainda teria a minha melhor amiga, mesmo depois que ela saísse da escola, já que ela tinha se tornado praticamente família. Eu havia parado de me cortar. Mas então me senti trocada de novo. Eu me senti uma intrusa na relação deles. Sempre atrapalhava quando eles queriam ficar sozinhos. Eu era um peso. Eles diziam que não, diziam que me queriam por perto, o até me apresentou alguns amigos dele, mas nenhum deles combinava realmente comigo. Uma vozinha chata na minha cabeça, que eu não escutava desde que se mudou pra perto de mim, me dizia que eles tinham pena, porque eu era sozinha. Acho que por isso eu acabei me afastando um pouco deles e então comecei a fazer de novo... - toquei no meu braço e deixei minha voz morrer no silêncio, sem saber se aquele era o fim ideal pra uma história.
  Ele me abraçou forte quando percebeu que não conseguiria dizer mais nada. Quando me soltou, sentou-se de frente pra mim e puxou pra cima a manga da minha blusa, deixando à mostra as marcas que eu mesma havia feito. Não senti vergonha, pela primeira vez.
  Ele passou a mão pelo meu braço, cobrindo toda a extensão dos machucados. Devagar, como se tivesse medo de que eles reabrissem, mas com toda a determinação que pôde demonstrar através de seu toque, como se quisesse fazer com que cada uma das feridas sumisse.
  - Você não precisa mais disso - ele disse, me olhando nos olhos - Não precisa mais se sentir sozinha, porque você não está! Eu vou sempre estar aqui por você - prometeu – Eu te ajudo, você me ajuda e a gente sai dessa juntos, tá bom?
  Assenti, sem encontrar as palavras certas pra demonstrar quão grata eu estava por tê-lo comigo.
  - Não precisa mais fazer isso - repetiu, me abraçando novamente.
  - Não vai mais sair do meu lado? - perguntei, retribuindo o abraço.
  - Eu não posso - ele disse, com um estranho tom de voz - E mesmo se pudesse, não ia querer, . Nunca.

Capítulo 14

  Já era sábado, véspera de Natal, e eu andava de um lado para o outro no meu quarto, esperando me ligar quando estivesse voltando pra casa. Almoçamos na casa dele aquele dia, e eu relembrei nossas últimas horas juntos.
  “- Para, seu idiota - eu dizia, rindo, enquanto ele me puxava pra dançar com ele uma música estranha que tocava no rádio. Parecia salsa.
  - Anda, , você tem que se distrair, tá parecendo a minha mãe! - ele disse e riu alto da cara que eu fiz - Agora você tá parecendo ainda mais com ela.
  Bati nele, mas acabei não resistindo. Ficamos dançando muito tempo na cozinha da Sra. , enquanto ela preparava o almoço e ria de nós, arriscando algumas dancinhas de vez em quando.
  Eu, supostamente, estava ali para ajudá-la, mas não deu muito certo.

  - Estou sentindo um ar de preocupação por aqui - ela disse, quando já estávamos comendo, depois de quase dez minutos em silêncio, nos quais eu e apenas trocávamos olhares ansiosos, enquanto disfarçávamos a nossa falta de apetite - O que está acontecendo?
  - Nada... - respondemos juntos e rimos, ainda nervosos.
  - É só... Bom, não gosto muito de Natal. - ele disse o que pareceu ser a primeira coisa que veio à cabeça. Quase cuspi o suco que estava na minha boca, de tão tosca que achei aquela resposta.
  - Pelo amor de Deus, , o que isso tem a ver? - a mãe dele disse, rindo, e resmungou algo sem sentido. Logo mudamos de assunto e ela não perguntou mais nada sobre aquilo.
  Quando a Sra. se levantou para atender o telefone, disse pra mim:
  - Para de fazer essa cara de assustada, ela tá desconfiando!
  - Cara de assustada? - perguntei, indignada - Você deveria ver a sua cara, , parece que está esperando na fila da forca!
  Ele riu, mas me ignorou, pois sua mãe havia voltado.
  Quando acabamos de almoçar, fomos para a sala, enquanto a Sra. se arrumava para visitar alguns parentes que disse decididamente que não iria sequer desejar um Feliz Natal.
  - Quando você vai? - perguntei, receosa, olhando pras escadas pra ter certeza que a mãe dele não estava por perto.
  - Quando ela sair - respondeu simplesmente e sorriu pra mim, tentando me tranquilizar.
  - Me deixa ir...
  - Nem pensar, , já te disse isso.
  - Eu não vou aguentar ficar em casa, sem saber quando você volta. Sem nem saber se você volta - falei, chorosa, fazendo bico.
  Ele me olhou de um jeito que eu não soube explicar, mas que soube que seria o olhar dele que eu mais amaria. Era um olhar que tinha certo receio, misturado com carinho e mais alguma coisa que eu não sabia o que era.
   sentou perto de mim no sofá e levantou uma das mãos, pra acariciar meu rosto, mas sua mãe entrou na sala e ele rapidamente abaixou a mão.
  - Estou saindo, crianças - ela disse, de um jeito divertido - Comportem-se!
  Ela saiu e ouvimos o barulho de seu carro quando este ligou.
  - Não vai acontecer nada comigo - disse, me olhando nos olhos e eu acreditei nele.
  - Promete? - perguntei, como uma criança. - Promete que vai voltar pra mim? - acrescentei e logo senti meu rosto queimar de vergonha. Eu tinha mesmo que soar tão estúpida?
  Ele sorriu e se aproximou mais. Passou um braço por cima do meu ombro e com a outra mão levantou meu rosto, me fazendo olhar em seus olhos.
  - Eu prometo - ele disse baixinho, com a voz um pouco rouca e aproximou seu rosto do meu.
  Meu coração batia acelerado. Meus sentidos ficaram mais aguçadas e eu sentia como se pudesse ler todas as letrinhas daquele livro que estava em cima da televisão, a cinco metros de distância.
  - Uau - ouvi uma voz e logo nos afastamos, em um pulo - Eu disse pra se comportarem! - a mãe de dizia, com uma expressão de desapontamento no rosto, mas logo sorriu. - Voltei porque esqueci os presentes - acrescentou e subiu correndo as escadas.
  Virei pra frente e apoiei minha cabeça nas mãos, fazendo com que meus cabelos caíssem como uma cortina, dos dois lados do rosto, enquanto sentia meu rosto queimar.
  - , tá tudo bem? - perguntou, tentando tirar minhas mãos do rosto. - Você tá chorando?
  Ri ainda mais. Quando ele viu que eu estava rindo, começou a rir também, mas seu rosto também estava muito vermelho e eu não sabia o que falar.
  Quando a Sra. desceu as escadas, ainda estávamos rindo. Ela balançou a cabeça e saiu, sem dizer uma palavra, mas ainda a vi lançar um olhar malicioso em nossa direção.
  Olhei pra e ele parou de rir. Remexeu-se desconfortável e, em uma mania só dele, assentiu como se tivesse acabado de concordar com os próprios pensamentos. Levantou e me encarou.
  - É melhor você ir pra casa... - ele disse, em uma voz controlada.
  - Ok - respondi, me levantando, e caminhei até a porta. - Boa sorte.
  - Espera. - ele me puxou de volta tão rápido que quando percebi, já estava em seus braços.
  Ele me abraçou forte e eu não tinha vontade nenhuma de sair de dentro daquele abraço.
  - Não se preocupa, eu vou voltar. Inteiro - acrescentou e riu. Senti o hálito quente dele no meu pescoço e suspirei.
  - Tudo bem - eu disse, lutando pra me afastar dele. - Eu vou te esperar. - pisquei e sorri, vendo-o sorrir de volta.”

  Meu celular tocou e eu quase o deixei cair no chão, no nervoso pra atender.
  - Alô? - falei, ansiosa.
  - FELIZ NATAL, PRIMA! - ouvi gritar e suspirei de decepção.
  - Ah. Oi, .
  - Nossa, que animação pra falar com seu primo mais gato e gostoso. - ele disse rindo.
  - Claro que você é o mais gato e gostoso. É o meu único primo - disse e ri quando o ouvi protestar. Sentei na cama enquanto conversava com ele.
  - A tá te mandando um beijo. Vamos viajar daqui a pouco, pra casa da minha mãe, e você sabe, lá não tem sinal, por isso tô te ligando agora - ele explicou.
  - Manda um Feliz Natal pra ela - eu respondi, tentando soar animada - E pra tia também! Vocês vão agora?
  - Tô colocando a mala no carro.
  Ouvi um “Feliz Natal, vindo da e sorri.
  - Ouviu? - perguntou, rindo.
  - Ouvi sim - eu disse, rindo também. - Manda um beijo enorme pra essa ridícula - eu continuei, me empolgando - Fala que eu amo ela, mesmo que ela seja uma idiota.
  - Outch, é assim que você trata o meu anjinho? - ele perguntou, indignado.
  - Eca - eu disse, fingindo nojo - Para de ser meloso, !
  - Não consigo - ele respondeu, com uma voz chorosa e eu ri alto. - Tenho que desligar agora, . Se cuida, pequena. E nada de ficar muito tempo com esse tal de . Ainda nem conheci esse moleque, portanto, ainda não te dei permissão pra ficar de agarramentos com ele!
  - Agarramentos? - perguntei rindo - Vai se ferrar, ! - ouvi a gargalhada escandalosa dele e sorri, sentindo saudades. - Feliz Natal, chatinho. Quando puder me liga, ok?
  - Pode deixar - ele garantiu - Se cuida.
  Depois que desliguei, me remexi inquieta na cama, me lembrando de e ficando ainda mais preocupada. Joguei-me pra trás e coloquei o travesseiro no rosto. Será que vai demorar tanto assim?
  Ouvi o toque do celular e dei outro pulo. Dessa vez olhei no visor e meu peito se encheu de alívio quando vi que era uma ligação dele.
  - Já saiu? - perguntei, sem nem dizer um oi.
  - Oi pra você também, . E sim, tudo bem comigo - ele disse, rindo, e eu quis bater nele.
  - ! – protestei. – Deu tudo certo ou não?
  - Vem aqui descobrir.
  - Aqui onde? - perguntei surpresa, me levantando.
  - Aqui na porta da sua casa. - ele disse e, como não obteve resposta, acrescentou - Tô aqui, inteiro, esperando você vir checar.
  Soltei uma risada estranha e desliguei o celular, jogando ele na cama e correndo até as escadas.

Capítulo 15

  Pulei no pescoço dele sem nem esperar que ele dissesse algo. Finalmente pude respirar aliviada.
  Ele me abraçou forte, e eu pude sentir o cheirinho de sua pele. Soltei-o quando percebi que estava fazendo uma cena de novela mexicana no meio da rua.
  - Como foi lá? - perguntei - O que eles falaram? O que eles fizeram? Eles te ameaçaram? Você conseguiu pagar? - Disparei tão rápido e desesperadamente que riu de mim.
  - Respira, - ele disse, achando graça - Eu consegui pagar. Não devo mais nada praqueles babacas - ele me abraçou de novo e tinha um sorriso bobo no rosto. - A partir de agora, vida nova, ! - ele disse no meu ouvido e eu sorri. Quando ele me soltou, foi apenas o tempo suficiente pra parar de me abraçar e colocar as mãos no meu rosto, me puxando pra perto, encostando seu nariz no meu. Senti minha pele arrepiar. Não pude deixar de sorrir, vendo-o tão feliz como estava.
  - Vida nova, ! - eu repeti, baixinho.
  Ele me olhou no fundo dos olhos e parecia conseguir ver a minha alma.
  - Você é tudo - ele disse, se aproximando ainda mais, acariciando meu rosto - Você é tudo.

  Estávamos na sala, arrumando os presentes debaixo da árvore. Íamos passar o Natal na minha casa. Meu pai disse que Chris, a nova professora de Álgebra e provavelmente sua namorada, ia passar o Natal conosco e disse que se eu quisesse, podia convidar . Ele aceitou, pois sua mãe ia passar o Natal com uma irmã e não queria ir.
  Não havíamos conversado muito depois da pequena cena em frente a minha casa. Eu não sabia o que pensar sobre aquilo e muito menos o que dizer. Mas o que havia acontecido continuava voltando à minha cabeça, por mais que eu quisesse esquecer.
  “Ele me olhou no fundo dos olhos e parecia conseguir ver a minha alma.
  - Você é tudo - ele disse, se aproximando ainda mais, acariciando meu rosto - Você é tudo.
  Mesmo sem entender o que ele queria dizer, sorri. Fechei os olhos e podia sentir sua respiração na minha boca. Impossível expressar o quanto eu queria aquilo, mas abri os olhos, lembrando da primeira (e única) vez que nos beijamos.
  - Não, - eu disse baixinho, querendo mais que tudo dizer que aquilo era o que eu mais queria. Mas não poderia suportar ver o arrependimento em seus olhos depois, como vira da outra vez. Já tinha tido uma experiência bastante ruim com as mudanças de humor dele que o faziam tomar impulsos esquisitos, e, agora, tinha muito mais coisa em jogo do que uma carona idiota. Eu não tinha certeza se queria arriscar tudo o que nós já tínhamos. Demorou tanto pra que conquistássemos aquilo, colocar tudo em risco parecia quase um pecado.
  Ele abriu os olhos e me encarou. Encostou a testa na minha e respirou fundo.
  - Você não quer? - ele perguntou, com aquela voz rouca que me enlouquecia.
  - Não faz isso comigo, por favor - eu pedi, sem forças.
  Ele se afastou e senti meu corpo inteiro doer. Abaixei a cabeça, derrotada, e quis ter coragem suficiente pra dizer tudo o que sentia por ele.
  - Vida nova - ele repetiu e eu o olhei. Ele sorria e me deu um beijo no rosto, fingindo que nada daquilo acontecera. O que eu disse sobre os impulsos esquisitos?! - Vida nova, mas eu ainda quero você nela.”

  A campainha tocou e eu fui atender. Não me surpreendi quando vi Chris parada ali, altamente produzida, com um sorriso simpático no rosto. Senti uma pontada de ciúmes, mas ignorei, afinal, depois da minha mãe, meu pai merecia ter a chance de seguir em frente.
  Para minha surpresa, e depois que eu me acostumei com o fato de conversar animadamente com uma professora sentada no sofá da minha sala, percebi que ela era bem legal. O silêncio de antes de sua chegada havia acabado completamente. Conversávamos sobre estilos de música quando meu pai me chamou na cozinha, alguns minutos antes da ceia. Deixei conversando com ela e me encaminhei até lá.
  - - meu pai começou e eu esperei, receosa. Me chamar pelo nome sempre era um mau agouro - Eu preciso conversar com você sobre um assunto muito importante... - ele disse, sem jeito.
  - Agora? - perguntei, querendo correr. Com um estalo, imaginei que ele iria me contar sobre seu "namoro" com Chris, mas eu já tinha percebido tudo mesmo...
  - E por que não agora?
  - Pai... - eu disse, tentando achar as palavras certas - Já é quase meia noite... E eu já sei que você e a Chris estão juntos mesmo, então podemos pular essa parte! - falei com um sorriso, deixando de lado a cautela e ri da cara que ele fez. - Qual é, pai... Tava meio óbvio, não acha?
  - Ah é? - ele disse, afrouxando o nó da gravata, desconfortável. Assenti e ele olhou pra mim confuso, como se esperasse algo. - Então... - ele continuou, com uma voz estranha. - Está tudo bem? Quero dizer... Você não vê isso como um problema? Sem gritos, sem...
  - Pai - interrompi contrariada. Aquela conversa estava sendo bastante hilária - Você está feliz? - ele se surpreendeu com a minha pergunta e demorou alguns segundos pra se recuperar. Quando conseguiu, sorriu e olhou pra baixo.
  - Ela me faz feliz - ele disse, ainda olhando para o chão - A Chris me faz feliz.
  - Então por mim tudo bem - eu disse segura, dando de ombros. Ele merecia outra chance. - Você merece ser feliz, pai, e se é ela quem te faz feliz, por mim tudo bem.
  Meu pai sorriu mais ainda e me abraçou. Aquilo foi tão inesperado que, por alguns momentos, não tive reação. Quando retribuí o abraço, senti um beijo na minha cabeça e o ouvi dizer:
  - Eu... Eu te amo, . - Confesso que lágrimas vieram aos meus olhos quando, finalmente, ouvi tudo o que sempre quis ouvir dele.
  - Pai, eu... - comecei a dizer, quando me afastei e o encarei, mas uma lágrima escorreu pelo meu rosto e parecia que havia algo em minha garganta, me impedindo de falar. Apenas sorri e ele sorriu de volta, me abraçando novamente.
  - Ah, achei que vocês não haviam percebido que já é Natal - ouvi Chris dizer animada, enquanto entrava na cozinha. Consegui ver vindo logo atrás dela e ela me abraçou, impedindo que eu visse qualquer outra coisa. Logo depois, foi até o meu pai e o abraçou também.
  Vi parado na porta da cozinha, olhando pra mim curioso, mas me virei de costas, evitando que ele visse que eu havia chorado. Ouvi meu pai dizer um "Feliz Natal, , espero que nos dê menos trabalho quando as aulas voltarem!", e sorri sozinha enquanto secava o rosto.
  Virei de novo e pude ver meu pai me dirigindo um sorriso feliz, enquanto saía de mãos dadas com a minha professora de Álgebra.
  - Ei, Feliz Natal - disse, sem jeito, com as mãos nos bolsos.
  Sorri e caminhei até ele. O abracei forte por muito tempo e ele retribuiu meu abraço.
  - Feliz Natal, - sussurrei em seu ouvido, e logo depois estalei um beijo em sua bochecha. - Feliz Natal...

Fim



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