Magic

Escrito por Lyli | Revisado por Andy C.

Tamanho da fonte: |


Capítulo Único

  Eu pude nos ver – eu com seis anos de idade e ele com doze – correndo por entre os bancos debaixo do sol. Pude nos ver – eu com doze e ele com dezoito – dançando na beira do lago debaixo das velhas árvores que já estavam lá antes de nascermos, quando ele cuidava de mim para meus pais poderem sair e ter uma vida. Pude me ver descendo aquele vale chamando o nome dele para encontrá-lo sentado na margem tacando pedras no rio quando eu tinha dezesseis anos e ele vinte e dois, mas nossa paixão já havia nascido. Não sabíamos como contar para nossos pais, mas com certeza saberíamos no futuro. Agora o futuro chegou e ainda não sabíamos como e quando contar, mas sabíamos que íamos contar. Precisávamos, a partir do momento em que pediu minha mão em casamento. Dei uma breve olhada no anel de ouro branco em minha mão e sorri, sabendo que logo o veria novamente.
  Saí da aula naquela tarde colocando meu cachecol e tremendo com a rajada de vento que veio em minha direção assim que abri as portas. Era oficial, o inverno tinha chegado. Muitas pessoas ficam tristes com esse acontecimento, mas não eu. A chegada do inverno é o momento mais feliz do mundo para mim, pois é quando eu volto para a casa. Não tenho tempo de voltar nos verões graças aos meus cursos, mas no inverno toda a faculdade fecha e eu posso pegar um avião em direção a Minneapolis, onde eu sei que, o amor da minha vida sempre está esperando por mim. , antigo amigo de infância, atual noivo.
  Peguei o avião em direção aos braços do homem da minha vida, do sorriso que eu mais espero para ver todos os anos. Mal podia esperar para correr em direção àqueles olhos brilhantes e matar as saudades daquele ano inteiro sem nos vermos. Meus pais foram me buscar no aeroporto e passamos a viagem inteira matando saudades. Eu os amava demais, mas mal podia esperar para ter um tempo só pra mim para poder sair correndo para ver meu . Durante toda a tarde colocamos nosso papo em dia e quando eu percebi, já era noite e estava frio demais para sair. Quando Minneapolis decide esfriar, esfria mesmo! Não é improvável episódios de nevascas bloqueando nossas portas. E todo ano, sem falta, o lago próximo a minha casa, no fundo do vale onde eu cresci, congela. E é naquele gelo que eu sempre encontro com .
  Acordei cedo no dia seguinte a minha chegada com a esperança de que poderia sair se que ninguém me visse, mas toda a família já estava acordada me esperando com um mega café da manhã. Fiz social sorridente, mas minha cabeça estava longe. Eu passei a manhã inquieta porque estava ansiosa demais para disfarçar. Passei um ano sem ver e queria estar com ele agora, queria abraçá-lo, dizer que o amo, lhe beijar até dizer chega e nunca mais soltá-lo. Durante a refeição, minha mãe notou meus péssimos modos e me chamou na cozinha. Eu nunca tinha lhe contado de , mas eu sei que ela sabia.
  – , o que está acontecendo? Parece que você não quer estar aqui com a sua família.
  – Desculpa, mãe... É que eu queria sair pra ver alguns amigos meus. – Ela sorriu de maneira dócil. Claro que minha mãe sabia que “alguns amigos” significava namorado. – Eu estou com saudades do pessoal.
  – Você quer ver o , não é?
  Me assustei quando ela falou o nome dele. Será que ela já sabia de tudo desde o começo? Nunca contamos porque pensávamos que a nossa diferença de idade fosse ser um problema para nossa família, mas se minha mãe não tinha problemas com isso então não tínhamos nada a temer. A mãe de já havia falecido há tempos, mas seu pai me adorava. O problema era que pensávamos que ele fosse ser contra um romance, já que ele me via mais como uma filha do que qualquer coisa. E só Deus sabe o que se passava na minha cabeça toda vez que pensava em contar para meus pais que estava namorando meu antigo babá. Mas quando minha mãe sorriu e me abraçou bem forte, eu soube que não precisava mais esconder.
  – Ele me pediu em casamento, mãe. Nós vamos nos casar depois da minha formatura.
  – Eu sei, querida. veio falar conosco no verão. – A soltei e ela estava já com lágrimas nos olhos. – Acho que eu estraguei a surpresa dele...
  Uma lágrima deslizou por seu rosto e acabou acontecendo o mesmo comigo. A sequei e fui até meu quarto pegar meu anel. Agora eu podia usá-lo sem medo de nada ou ninguém. Mandei uma mensagem para , peguei um casaco e um cachecol e fui em direção ao lago. É uma caminhada de mais ou menos vinte minutos da minha casa até o lago, mas eu fui correndo e cheguei bem mais rápido do que o normal. O vento frio castigava meu rosto, mas eu não ligava. Só o que importava agora era ver . Tomando cuidado para não escorregar na neve, eu fui descendo o vale isolado do mundo que ficava ainda mais deserto no inverno justamente graças à neve. Avistei logo a casinha de na beira do lago e quando estiquei o pescoço, o vi sentado tacando pedras no gelo, como ele sempre fazia quando estava impaciente.
  – !
  Assim que me viu, ele abriu um lindo sorriso. Mesmo com um dia nublado, seus lindos olhos brilhavam, trazendo a mim uma sensação mágica de felicidade ainda maior. Isso era o melhor de , cada segundo ao seu lado era mágico. Ele fez um sinal para que eu fizesse silêncio. Mesmo o vale sendo longe de tudo e todos, o pai de ainda descansava em casa. Por mais que ele fosse um senhor idoso que nunca saía da cama sem a ajuda do filho, meus gritos não seriam a maneira mais correta de contar pra ele sobre nós. Desci correndo o vale sem me importar com a neve sujando minha roupa e vi correndo até mim, com seus cabelos ao vento prontos para me receber. me alcançou e me levantou pela cintura. Ele me girou em seus braços. Eu podia ver em seus olhos a mesma felicidade que eu sentia e também a mesma saudade de um ano inteiro acumulada. Mal podia acreditar onde estávamos. Só de pensar que toda essa história começou quando eu tinha seis anos e nós brincávamos na beira daquele mesmo lago... Parecia tão surreal que agora eu tinha vinte e dois anos e ele tinha acabado de completar seus vinte e oito. A diferença de idade não era importante para mim. Só o nosso amor era.
  – Eu te amo, . – Ele se sentou no gelo e me deitou sobre seu colo. Estava frio, mas nem ligávamos. O calor dos nossos corpos unidos nos manteria aquecidos. – Vou te amar pra sempre.
   me beijou e eu mal pude acreditar que aquele era finalmente seu beijo. O toque dos seus lábios nos meus era uma sensação hipnótica que eu sentia falta todos os dias do ano e só tinha nos invernos. Mas isso ia acabar. Eu voltaria para a faculdade depois das festas de fim de ano e então quando o ano acabasse eu iria me formar e e eu íamos nos casar. Estaríamos juntos para sempre, como deveria ser desde o começo.
  – Minha mãe me contou o que você fez. – Ele riu e escondeu o rosto com a mão, parecendo sem graça. – Não acredito que você escondeu isso de mim!
  – Era pra ser surpresa... Mas você gostou?
  – Amei! Ela apoia o nosso casamento. – Passei a mão por seu rosto e lhe dei um rápido beijinho. Ele sorria para mim, me olhando nos olhos. Em seus lindos olhos , eu vi o quanto ele me amava. Acariciei seus cabelos que caíam sobre mim, imaginando que agora eu poderia ter aquilo para sempre, todos os dias, todas as vezes que eu quisesse. seria meu, só meu. – Você já falou com seu pai?
  – Não, mas acho que ele vai ficar feliz de eu finalmente desencalhar. – Ambos rimos de sua piada, sabendo que havia um fundo de verdade nela. Na verdade eu me preocupava. Quem iria cuidar dele quando nos casássemos? Será que pensava nisso? – Aliás, eu queria te perguntar... – Ele mordeu o lábio inferior, parecendo nervoso. Hesitante, ele continuou falando. – Você se importaria se a gente morasse na minha casa depois do casamento?
  Eu vi em seus olhos a insegurança de um homem que não queria abandonar o pai e também a incerteza de alguém que tinha medo de falar alguma coisa que a noiva desaprovasse.
  – Não tem problema nenhum, o seu pai vai precisar de companhia. – Com o rosto cintilando de felicidade ele me deu outro beijo, ainda mais intenso e apaixonado. – O que você acha de contarmos a novidade pra ele agora?
  Depois de me dar mais um beijo, se levantou e me puxou pela mão em direção à sua casa. Ele foi caminhando para fora do gelo, mas eu não consegui me mexer. Algo estava errado. Meus pés não pisavam mais na superfície dura e fria do gelo. O que havia embaixo de mim era instável e começava a se mexer lentamente. Quando ouvi o barulho que se assemelhava a vidro quebrando, eu soube. Com cada pedaço do meu corpo tremendo eu tinha até medo de olhar para baixo, mas já sabia que uma rachadura no gelo crescia a cada segundo mais abaixo de mim.
  – ... – Minha voz soava quase como um sussurro. Ele continuava andando enquanto o pavor tomava conta de mim. Reuni todas as forças que pude dentro de mim e engoli o choro que já vinha para gritar seu nome. – !
  Ele se virou para mim. Ainda estava rindo, mas o sorriso lindo se dissipou em medo quando ele olhou para meus pés. Ouvi mais um barulho e o gelo sob meu pé direito afundou alguns centímetros. Água gelada e cortante envolveu a sola do meu pé. estava paralisado de medo, tentando pensar no que fazer. Ele apenas me olhava com os olhos arregalados, sendo incapaz de fazer com que eu ficasse calma e me sentisse melhor diante daquela situação horrível. Qualquer pequeno movimento meu poderia ser fatal e sabia disso.
  – , não se mexe.
  – ...
  – Não fala nada. Eu vou dar um jeito, vai dar tudo certo.
  Ele foi se aproximando bem devagar, sabendo que um passo em falso poderia se tornar letal. deu três passos largos em minha direção e então quando estava perto de mim, a rachadura se alastrou um pouco e quase alcançou seu pé. O som me fez tremer e de repente todo o meu rosto já estava cheio de lágrimas.
  – , vai chamar alguém.
  – Não adianta chamar ninguém, . Esse lago é escondido do mundo. Nós vamos ter que fazer isso sozinhos. – Hesitante, sabendo que a rachadura poderia ceder a qualquer momento, ele continuou se aproximando. Quando estava a menos de dois metros de mim e quase dentro da rachadura que já começava a minar água congelando meus dois pés, ele estendeu a mão. Mas eu não conseguia me mover, eu estava com medo demais. – , confia em mim.
  No fundo de seus olhos eu vi que podia confiar. Eu vi que ele faria de tudo para não deixar que eu me machucasse ou que qualquer coisa de ruim acontecesse comigo. Não importa o que acontecesse, estava lá por mim. Eu respirei fundo e driblei o medo, segurando sua mão.
  O que aconteceu foi tão rápido que eu mal pude perceber. me puxou com toda a força que conseguiu reunir e me jogou longe daquela rachadura, quase na beira do lago. Eu bati com a cabeça no gelo e senti uma dor descomunal. Coloquei a mão na testa e vi sangue misturado com um pouco de neve. Ignorando a dor de cabeça, eu olhei para trás e o pior estava acontecendo. Vi lutando contra a água que o puxava mais e mais para baixo, enquanto a fenda no gelo aberta pela rachadura só fazia aumentar. Aumentou até que ele não conseguisse mais segurar em uma borda segura e afundasse.
  Corri até o buraco sem me importar com o perigo. Eu não podia deixar que o amor da minha vida fosse levado pela água.
  – ! – Me ajoelhei na borda nada segura e enfiei os braços na água gelada sem hesitar. O frio cortante subiu por meus braços e arrepiou todo o meu corpo, dando a sensação de que eu estava completamente imersa, assim como . Eu cavei naquele poço escuro e sombrio, até que mal pudesse sentir minhas mãos. – ! Volta pra mim, ! – Eu gritava seu nome a plenos pulmões, mas não adiantava. Eu não conseguia mais vê-lo. Apenas imaginava seus fios navegando naquele enorme rio, seus olhos sem vida, imersos pela água gelada, indo cada vez mais fundo. Por um segundo, imaginei ter sentido algum pedaço dele tocando minha mão que já estava começando a ficar azul, mas foi apenas coisa da minha cabeça. se foi e eu nem tive chance de dizer adeus.
  Bati no gelo, sem medo que ele cedesse. Na verdade acho que eu me sentiria melhor indo junto de meu amor do que ficando sozinha no mundo. Eu gritava por seu nome e também por ajuda, mas era inútil. Ninguém nos ouviria naquele vale escondido do mundo e a única pessoa por perto era o pai de , que não podia se levantar sozinho da cama. Eu continuei batendo no gelo incessantemente, como se aquilo fosse resolver alguma coisa. Acho que na verdade eu queria que a fenda se abrisse mais e me levasse junto, porque eu não queria um mundo sem . Não era justo um mundo sem . Eu continuava chamando seu nome enquanto lutava para não pensar em seu corpo indo mais e mais para dentro da água, afundando lentamente, perdendo mais vida a cada segundo. Sua mágica se afastando cada vez mais de seu corpo quase sem vida.
  Quando senti que o sangue circulava cada vez menos em meus braços, parei de bater no gelo por falta de forças. Meu coração estava mais acelerado do que nunca e as lágrimas geladas que caíam dos meus olhos batiam em minhas mãos sem efeito algum. Eu mal conseguia senti-las. Na verdade eu não sentia nada além de dor. Física e emocional. Cada pedaço do meu corpo doía, assim como cada parte despedaçada de minha alma devastada. O vazio que tomava conta de mim levando embora cada mísero resquício de esperança começou a fazer efeito em todo o meu corpo e eu não conseguia mais mover um centímetro de mim mesma. Quando percebi eu estava deitada no gelo, ao lado da fenda, torcendo para que um milagre trouxesse meu de volta. Eu lutava contra minha própria força interior para levantar dali e correr pedindo ajuda, mas não adiantaria mesmo que eu conseguisse. Até eu encontrar alguém já seria tarde demais. Na verdade já era tarde demais. Mais e mais lágrimas se fizeram presentes em meu rosto imaginando que nunca mais eu veria o brilho de seus olhos e carinhosos. Como eu enfrentaria uma vida inteira sabendo que caiu no rio congelado por minha causa? Como eu contaria para o pai dele? Como eu sobreviveria? A cada segundo que passava comigo deitada no duro gelo, menos do meu corpo eu sentia e menos eu queria sentir. Era como se eu pudesse sentir a mágica de ali presente, perto de mim. Como se ele estivesse deitado ao meu lado pela última vez. Talvez ele estivesse ao meu lado, talvez ele estivesse logo abaixo ou já a milhas de distância. Não importava. Eu sabia que nunca mais teria paz interior em mim, mas ao menos eu esperava que agora que estava livre das pressões do mundo ele tivesse. Foi tudo que eu consegui pensar naquele momento: que eu desejava mais do que tudo que agora pudesse dormir e não se preocupar, pois agora ele estava livre das cobranças desse mundo.
  Eu pude nos ver – eu com seis anos de idade e ele com doze – correndo por entre os bancos debaixo do sol. Pude nos ver – eu com doze e ele com dezoito – dançando na beira do lago debaixo das velhas árvores que já estavam lá antes de nascermos, quando ele cuidava de mim para meus pais poderem sair e ter uma vida. Pude me ver, descendo aquele vale chamando o nome dele para encontrá-lo sentado na margem tacando pedras no rio quando eu tinha dezesseis anos e ele vinte e dois, mas nossa paixão já havia nascido. Eu pude nos ver pela última vez naquele lago – eu com vinte e dois anos e ele com seus recém-completados vinte e oito – felizes, comemorando que agora poderíamos ficar juntos sem medo do que nossas famílias fossem dizer. Eu pude nos ver dando o último beijo e nos separando pela última vez. Eu pude ver indo embora para sempre.
  De volta ao rio no final daquele vale onde havia tantas belas árvores que estavam lá antes de nascermos, eu me ajoelhei no grosso gelo como sempre fazia naquela época do ano desde o trágico fim de . Era estranho como trinta anos já tinham se passado, agora eu tinha cinquenta e dois anos e meu amor teria cinquenta e oito se não fosse o triste destino que a vida o reservou. Superar não foi fácil, na verdade foi impossível. Eu nunca superei. Casei, tive dois filhos agora adultos, mas nunca consegui me desvencilhar de Minneapolis, daquele rio. Mesmo que ele trouxesse más lembranças, não era simplesmente fácil deixar de lado uma experiência tão intensa. Depositei suas flores que eu sempre levava ao lago em todos os invernos e uma lágrima deslizou por meu rosto. Não importa quanto tempo passasse, sempre estaria aqui. O corpo de jamais foi encontrado e eu podia sentir que ele ainda estava ali. Como eu sempre estaria ali por ele. Mesmo sendo trágico, eu sentia a mágica de me envolvendo por todos os lados.

Fim...



Comentários da autora


Bom gente, é isso! Espero que vocês tenham gostado da minha short. Uma das coisas que eu mais gosto é songfic e essa é baseada numa música que é meu eterno xodó. Recomendo a todos que escutem Magic do Ryan Liestman, que é tão depressiva quanto essa fic, mas é linda.

TwitterAskTumblrGrupoMais Fics