Immortal

Escrito por Bruh Fernandes | Revisado por Lelen

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Prólogo

  “Sempre li nos lumes que os filhos dos deuses não eram tão felizes assim. Sempre muitos mortais presunçosos e metidos que acreditam ser capazes de desafiar-lhes. E, também, muitos deuses em guerra. Ou, simplificando, trabalho, trabalho e mais trabalho. Uma grande chatice. Mas a verdade é que não é tão dramático quanto os lumes contam. Ah, quase havia me esquecido de esclarecer o que é lume. Vocês, terráqueos, os chamam de li... Livros, isso! Se você olhar no dicionário mortal, lume quer dizer luz. Livros podem ser comparados a Zeus soltando raios pela Terra: grandes luzes.

  Para quem não sabe, já que nossa vida não é de toda mistério, Zeus é o High daqui, ou, como vocês dizem, o tal. Como seus presidentes ou monarcas... Aliás, ainda existem Reis por aí? Faz tempo que meu pai me falou sobre a Terra. Enfim, Zeus é simplesmente o Deus do Olimpo e manda em todos, inclusive meu pai, minha mãe e eu. É aquele ditado universal, manda quem pode, obedece quem tem juízo.

  Meu pai é Éolo, Deus do vento, que controla desde as leves e gostosas brisas de verão que refrescam nossos corpos até as piores tempestades que destroem casas e despedaçam corações. Mas nunca, posso lhes garantir, sem motivo. Sempre repetia para mim quando pequena: “Quem semeia os ventos, colhe tempestade” e este é, com certeza, seu maior legado. Sempre viveu na ilha Eólia, e as únicas vezes que se afastava de lá era para encontrar minha mãe.

  Esta é Héstia, Deusa dos laços familiares. Seu símbolo é fogo, e acho que isso tem tudo a ver com meu pai. Era como se o vento conseguisse aumentar o fogo, mas ao mesmo tempo ameaça-lo com seu poder; e como se o fogo límpido e poderoso sentisse mais forte com o vento e ao mesmo tempo submisso a ele. Minha mãe prezava, acima de tudo, a família, sua interação. Tanto que meu pai via seus filhos todo o amanhecer antes da reunião promovida por Zeus, ou, como vocês classificam as passagens de tempo, a cada quinze dias.

  Oh, sim, eu tinha irmãos! E não, não eram deuses como eu, eram semideuses. Meu pai teve noites com mulheres mortais antes e depois de meu nascimento, o que gerou mais cinco filhos. Uma vez me contaram que nesse planeta que você vive isso se chama traição. Aqui se chama prazer e amor; O que ele sente por minha mãe é amor, o que ele sentia pelas mulheres era desejo, prazer. Mamãe, sempre protetora dos laços familiares, insiste que ele vá visitar os filhos, pois eles precisam de um pai que os apoiem e lhe mostrem as duas vidas que tem.

  Tirando essas meras diferenças, eu sou como uma humana qualquer, só que imortal, muito mais forte que um quartel de guerra e com poderes que giram entre o fogo e o vento. E minha vida não é nada complicada, durante criança tinha ensinamentos teóricos com meus pais e quando adolescente até hoje, com vinte dois yee – o que corresponde aos anos dos deuses – travei treinamento de lutas para ficar preparada para qualquer eventualidade. Que, provavelmente, nunca iria acontecer. Praxe.

  Tinha a maioria do meu tempo livre, onde eu nadava na água quente e verde da ilha e brincava com meus poderes. Ou lia os lumes, tão comuns e importantes por aqui. Época que eu era feliz e não sabia. Que eu era triste, e também não sabia. Ou, ao menos, que eu era mais decidida do que confusa. Época que, enfim, eu era e não que eu acho que sou, como agora estou.

Capítulo 1

  Já crescida, eu sempre trabalhava com gratidão. Como explicar essa palavra no seu mundo? É como um trabalho que você faz sem receber nada em troca, ao menos se pensarmos em pagamentos visando exclusivamente nosso bem. Não sei como explicar direito, não sei se há um nome especifico para este tipo de trabalho aí na Terra, papai nunca comentou sobre isso comigo – e é ele que sempre me ensina sobre o mundo dos mortais. Esta palavra será uma das coisas que você terá que me ensinar.

  Era mais um dia de gratidão, em que eu ajudava as pessoas. Geralmente eu ficava na ala dos feridos mortais e desta fez não fora diferente. Basicamente, nós cuidávamos dos mortais que eram feridos por semideuses. Não importa quem começara ou quem era o certo ou errado, um semideus nunca devia lutar com um mortal, simplesmente por ser bem mais forte, o que os deuses consideravam injustiça. Se considerarmos que há milhares de semideuses, a média de entrada de um ferido consiste na metade de cada reunião de Zeus, o que na linguagem humana quer dizer que a cada semana tínhamos novos visitantes machucados.

  Nenhuma situação dos mundos dos mortais interferia ou influenciava essa rotina, o que foi uma surpresa receber três humanos em três dias seguidos. Fui incumbida de ajudar o terceiro sobrevivente, um rapaz, soldado de seu país, que estava lutando na guerra e travou uma batalha com um semideus. Antes de tudo, explicarei como ocorre a entrada dessas vitimas depois do embate. Um mortal nunca pode entrar em meu mundo sem permissão de Zeus, assim esses trabalhos que realizo são organizados em Halem, um mundo de passagem, onde ninguém vive e o mesmo só serve de passagem entre mortais e imortais. Assim, vou até Halem a fim de ajudar esses humanos, que chegam para serem curados. No meio da luta o semideus sofre retaliação de seu parentesco – pai ou mãe – imortal e perde suas forças. O mesmo deus leva o humano ferido para este mundo de passagem. Simples.

  Observei o homem, os ferimentos superficiais na cabeça e ombros e os mais fundos e perigosos no abdômen, que sangravam bastante. Qualquer mortal gritaria de dor, mas aquele não. Ele estava quieto, passivo, enquanto recebia os primeiros cuidados. Seus olhos eram a única forma de perceber o quanto ele sofria. Mais do que simplesmente perceber, os olhos nos tornavam capazes de sentir na pele toda a dor que ele sentia. Profundos, opacos, tristes. Talvez ele não fosse qualquer um.

  Todavia, ele sobreviveria. E sobreviveu, mesmo. Depois do socorro imediato, ele foi submetido a cirurgias. Não exatamente como na Terra, pois está ligado também com os poderes que cada um tem ali, mas ainda usamos linhas e agulhas sim. Depois do susto, era só se recuperar. E pode-se dizer que essa foi a minha parte preferida.

Capítulo 2

  Depois que ele apresentou um quadro melhor de saúde, as deusas se dispersaram, prontas para fazer qualquer coisa a não ser olhar para o doente que ainda se encontrava meio grogue na maca. Eu fui forçada a ficar ali. Primeiramente, eu queria acreditar que fiquei parada em frente a seu leito porque todas sumiram rapidamente e sempre tem que ter alguém supervisionando o doente nas primeiras horas. Mas, em seguida, bom, era como se a Afrodite com toda sua beleza estivesse ali em frente e não um mortal qualquer, por estar me encantando e me atraindo a tal ponto de ser afetada por tonturas e impedida por uma força maior que Zeus de sair dali, de perto dele.

  O rapaz começou a se mexer lentamente, recobrando os sentidos e abrindo os olhos devagar. Examinou o local em que estava e com um olhar assustado me encarou, como se estivesse esperando uma resposta. Só faltava em sua testa o sinal de interrogação, porque para ficar mais claro o quão ele estava confuso, só as luzes de High. Eu só me pus a sorrir, enquanto também o olhava.

  - Qual a última coisa que se lembra? – comecei o interrogatório de perguntas, enquanto pegava a prancheta para anotar as informações do paciente. Era normal que depois dessa, digamos, aventura de lutar com um semideus, eles esquecessem muitos detalhes. Ou mais.
  - Eu estava na Polônia, perto do cerco dos inimigos e estava lutando com eles.  – respondeu calmamente, forçando sua mente – Não...não me lembro de mais nada, é uma imensidão de vazio. Sei que existe alguma coisa, mas é como se estivesse tudo preto. – fez uma careta – Você pode me ajudar?

  Anotei minimamente na prancheta e a deixei de lado, enquanto sentava numa cadeira pronta para contar-lhe a história, colocar as cartas na mesa, sem mentira, como nós sempre fazíamos. Assenti, sorrindo, “eu vou te ajudar”, e assim contei toda a história a ele. Demorou mais do que eu esperava, porque ele sempre interrompia para fazer perguntas ou comentar alguma coisa irrelevante. Deve ser isso que você faz pela Terra também.

  - Obrigada por me ajudar – ele sorriu, seus olhos brilhando.
  - É meu trabalho – dei de ombros – Bom, agora eu vou embora, meu trabalho por aqui acabou. – firmei um sim com a cabeça – Espero que você volte logo para seu país, boa sorte! – sorri, já com as mãos na porta – Ah, já ia me esquecendo, quer alguma coisa?
  - Só uma. – assenti, esperando o pedido de água ou remédio pra dor – Quero que você fique aqui comigo.

Capítulo 3

  Era o segundo dia que passava ao lado dele.
  - Então seu pai faz as tempestades? – inquiriu . Esse era o nome dele – E minha mãe sempre culpou São Pedro*... – e riu.
  - Quem é esse? – perguntei, não entendo porque ele tanto ria de sua própria fala. Mas ele somente disse “esquece”, e continuou a me perguntar coisas sobre a vida dos deuses.
  - Então eu só consigo te procurar no seu mundo se pedir para Zeus?
  - É. Mas você não precisa me procurar. – dei de ombros – você voltará para o seu país e você se esquecerá de mim.
  - Eu nunca me esquecerei de você. – respondeu sereno, me mirando.
  - E eu não me esquecerei de que você está cansado e precisa dormir. Ande, deite-se e cubra, porque eu vou desligar as luzes e sair para você dormir.
  - – ele segurou meu pulso, me impedindo de continuar – Promete que amanhã estará aqui. – suspirou.
  - É sua despedida, é claro que estarei aqui. – e sai.

--#--

  - Filha de Éolo, o que faz aqui tão cedo? – uma das deusas me perguntou. Aqui em Halem, e às vezes no meu mundo também, nós somos conhecidas por nossos pais e mães deuses.
  - Chamaram-me. – a olhei confusa – não fora você?
  - Não, fui eu! – exclamou a outra, aparecendo no instante – O paciente 364 – veio logo em minha cabeça - pediu que a chamasse. Eu não queria, mas ele insistiu dizendo que era o último dia dele aqui. – deu de ombros – Ele parecia querer muito.
  - Hm, ok. Obrigada então, vou ao quarto dele. – comecei a caminhar para as alas onde ficavam os quartos de recuperação.
  – Na verdade, - a deusa gritou, chamando minha atenção - Ele está na sala de estar te esperando. Primeiro perguntou se havia algum jardim por aqui e eu só pude oferecer-lhe nosso tapete florido – sorriu.
  Agradeci e segui para a sala, encontrando-o sentado no tapete assistindo televisão, roendo as unhas e parecendo terrivelmente ansioso.
  - Olá. – entrei o saudando e fechei a porta atrás de mim.
  - Ei, que bom que chegou – e se levantou para me cumprimentar. Segurou em meu braço e encostou nossas bochechas levemente. – Queria um jardim, mas só tinha o tapete! – exclamou falsamente indignado. Nós rimos.
  - Porque você queria flores?
  - Eu queria mostrá-las a você. São como espelhos, especificamente e exclusivamente seu. Porque cada vez que eu olho para você lembro-me de uma flor e cada vez que miro meu olhar em uma flor, eu penso em você. Vocês são idênticas, espelhos. Ambas são meigas, doces, aparentemente frágeis, mas poderosas internamente, dedicadas, amorosas, carinhosas, perfumadas e lindas. E, digo, extremamente lindas.

  Soltou a declaração de uma vez. Sem pudor, com aquele sorriso lindo no rosto e o olhar brilhante. Deixando-me embasbacada, sem saber o que falar. Em meus 22 yee eu nunca havia escutado algo tão bonito, ainda mais direcionado a mim!

  Sorri abertamente, pronta para lhe dar um abraço, mas ele se antecipou e encostou sua boca na minha. Com cuidado, passou a língua pelos meus lábios e segurou minha nuca esperando eu permitir passagem. Demorei um pouco para isso, porque não estava acostumada, mas o fiz, segurando em seu braço musculoso. E então ele comandou os movimentos, as línguas se unindo e brigando entre si num delicioso misto de babas, por que sim, é isso que é um beijo. Mas foi O beijo, o melhor da minha vida.

  Mexo com vento e fogo, cuido de ferimentos graves, leio lumes, tenho pais deuses, mas isso eu nunca tinha experimentado. Eu nunca havia beijado alguém. Todos os pretendentes que apareciam, papai os afastava por me achar nova, ou bem melhor do que eles. E eu nunca havia beijado na vida. Fora meu primeiro e melhor beijo.

  - Fica comigo... – sussurrou ele, com nossos narizes e corpos colados. Deu-me um selinho – Por favor.
  - Não posso – respondi brevemente, querendo aprofundar o beijo, mas ele se afastou, dando-me só mais um selinho.
  - Quando abri os olhos naquela sala soube que você era o amor da minha vida, eu não posso te deixar aqui, não posso ir sem você, não posso ficar longe de você, não vou aquentar... – segurou meu rosto, me olhando nos olhos. – Diga que fica comigo.
  - Eu queria. Desde que eu te vi entrando aqui, vi que você não era qualquer mortal, mas eu não posso me permitir a isso – me afastei lentamente, mantendo somente nossas mãos unidas – Por Zeus, eu queria ficar com você para o resto da vida, mas somos de mundos diferentes, não podemos cometer loucuras só para sucumbir nossos desejos.
  - Eu não vou conseguir...
  - Parece ruim agora, mas vai melhorar. Para nós dois, ok? – limpei uma lágrima que saia de seu olho – Tudo vai ficar bem. Nunca se esqueça de que eu aprecio você.
  - Nunca se esqueça de que eu te amo.”.

  Eu nunca esqueci suas últimas palavras a mim. Perguntei ao meu pai o que significava e espero não ser tarde agora dizer que eu te amo. Te amo, te amo, te amo, repetidas vezes. Desculpe por tratar você, , como “ele” em praticamente toda a carta, mas tudo parece tão distante agora. Você está tão distante que parece que isso é somente uma história contada pelos lumes. Sendo ou não, ela será eterna, imortal, assim como nosso amor.
  Beijos cálidos da deusa que mais te ama em todos os mundos.


  * É uma crença onde acreditam que São Pedro provoque as chuvas e as controlem. Quem nunca escutou as famosas frases quando um toró está caindo do céu: “São Pedro caprichou hoje!”; “São Pedro resolveu arrastar os móveis”, entre outras? ;)

Capítulo 4

  E olá. Pensou que tivéssemos sido apresentadas antes? Não, aquela era uma carta a , meu amor. Carta está que entreguei há uma reunião atrás de Zeus para a ave de entrega. É como o pombo-correio de vocês, só que literalmente. Bem, é uma ave que viaja de mundo para mundo para entregar as cartas. A entrega é rápida, no máximo algumas horas e a ave só volta quando cumpre sua tarefa de entregar a carta ao destinatário.

  A ave não voltou. Uma reunião de Zeus e ela não retornou. Ou seja, ela não conseguiu achar , mas por quê? Era tarefa fácil para ela, eu tinha o endereço! Porque ela não havia conseguido? Cada dia me preocupava mais e mais com isso.

  - Filha, você não tocou em sua comida. – minha mãe reclamou.
  - Não estou com fome – fiz uma careta – Onde papai está, que não na mesa de jantar?
  - Zeus o chamou para conversar. – exibi uma cara de assustada.
  - Você sabe por quê?
  - Eu ia te fazer a mesma pergunta. – me olhou tensa, o que me fez engolir em seco.

  O tempo demorou a passar aquela noite, enquanto esperava meu pai chegar. Estava preocupada demais com uma série de coisas para se quer pensar em descansar. Parecia-me fraco demais no momento.

  - Pai, você chegou!
  - Sim, querida – disse, me dando um beijo na testa – Agora descanse, preciso conversar seriamente com você amanhã.
  - Eu não vou conseguir dormir. Tem alguma coisa a ver com... – eu sentia, eu sentia, só podia ser – com ?
  - Se esse é o nome do seu affair humano, é sobre ele mesmo. – e assentiu preocupado.

Capítulo 5

  Meu pai, deus do vento, nunca ficava preocupado. Era sempre alegre, divertido, nunca me dera grandes broncas, mas desta vez ele estava tão sério, com um rosto visivelmente preocupado, que me assustou. Ainda mais.
  - O que aconteceu? – segurei seu pulso, desesperada pela resposta.
  - , o mortal está aqui – informou, vislumbrando meu rosto confuso. Continuou: - Está em nosso mundo, no mundo dos imortais, te procurando!
  - POR ZEUS! – gritei eufórica, andando de um lado a outra da sala – Por que...como...ele fez isso? Quer dizer, eu, eu contei a ele como...entrar em nosso mundo, mas eu nunca...nunca imaginei que ele fosse fazer algo assim! – meneei a cabeça negativamente.
  - Ele clamou Zeus na Terra, conversou com High. Disse-lhe exatamente: “eu amo , filha de Éolo e Héstia, preciso vê-la novamente”. E Zeus permitiu.
  - Permitiu? E se Zeus o castigasse pela audácia? Ele... Ele é um completo louco! Isso, louco!
  - Zeus nunca castigaria qualquer um que fosse se o motivo que convém é o amor. Amor é o sentimento mais puro que existe, não merece repreensão, mas ajuda! – exclamou irritado.
  - Sim, papai, me desculpa. Mas não acredito que Zeus o permitiu entrar em nosso mundo só por essas poucas palavras! Então, cadê o mortal?
  - Eis a questão. Zeus o permitiu entrar, mas o deixou perdido em nosso mundo. Proferiu para o humano: “Se tu sentes amor de verdade, não custarás andar por todo o reino dos imortais a procura de sua deusa amada” Ele deve gostar muito de você!
  - Oh, Zeus! Ele... Aceitou? Ele está em nosso mundo me procurando sem saber onde moro? – meu pai assentiu – Um completo louco, louco! é um louco!
  - Um louco apaixonado – completou meu pai piscando para mim.

Capítulo 6

  Sendo ou não um apaixonado, ele era um louco! Imagine só você procurando por todo o mundo alguém que a única coisa que sabe é que mora em uma ilha. No máximo o nome do pai. Ah, acrescente aí que o meu mundo é trinta mil vezes maior que o seu. Agora exclua dinheiro, e adicione fome e sede. Próximo passo? Pule de alegria e se jogue do penhasco logo depois, porque, né, para se sujeitar a essas coisas tem que ter um parafuso a menos na cabeça.

  Mas, apesar de tudo, lá no fundo, bem lá no fundo, eu gostei da ideia. Quer dizer, é uma loucura por amor! me amava tanto a ponto de me procurar em todo o mundo, literalmente! Como procurar uma estrela específica no céu ou um deus sem poder no mundo dos imortais: quase impossível.

  Não sabia nem por onde procurar. Passei pelos palácios dos deuses que tinha mais contato e lhes perguntei sobre um humano perdido. Se viram, souberam, sentiram, ou qualquer coisa imortal deste tipo. Fora uma viagem de horas praticamente perdida. Se não fosse por Atenas. Atenas é a deusa da estratégia, das guerras bem pensadas e organizadas. Fora ela que me revelou onde estava . O que, infelizmente, não pude dizer que foi um alívio.

  - Não foi a primeira vez que vi um humano lá. Também não fora a primeira vez que fui desafiada por Ares. Seria repetitivo se falasse mais uma vez que não fora a primeira vez de algo? Não fora a primeira vez que ganhei de Ares. – ela começou seu discurso, glorificando-se. Típico dos deuses.
  - Atenas, desculpe interrompê-la, mas peço que sintetize ao máximo, porque não tenho tempo a perder!
  - Bom, não tenho certeza se o mortal é o seu, mas digamos que são coincidências demais até para os deuses. Ares adora guerra e violência, ainda mais quando envolve amor. Tudo fica mais profundo. – deu um sorriso terno.

  Atenas me contou que em sua última visita a Ares, ele lhe mostrou um humano. Preso a uma gaiola, como um bicho. Ares, sempre metido e astuto, revelou que o encontrou perdido por amor. Dera um de seus risos perversos e disse que independente da deusa que o mortal amasse – o mesmo não quis revelar qual era a imortal– Ares mataria o humano na frente dela, para se satisfazer com o sangue mortal e o sofrimento imortal, uma das junções que mais gostava, principalmente quando envolvia paixão.

  Ares era o deus da guerra. Filho de Zeus e de Hera. Um dos doze deuses do olimpo, apaixonado por Afrodite, além da carnificina e violência. Até seu pai não gostava dele. Atenas, muito menos, sempre batalhava com ele e, geralmente, ganhava por suas estratégias. Era governador da cidade de Esparta. E seu tempo livre, o que era quase todo o tempo imortal, era gasto sequestrando e matando os outros dolorosamente, seu hobbie preferido. Na Terra, seria como um serial killer. Nem um pouco assustador.

  - Como farei para libertá-lo? – perguntei desesperada.
  - Ares é bom, não posso negar. Mas ele tem um defeito que o destrói. Ele gosta da guerra no seu lado mais brutal, gosta da carnificina e só encontra sua paz nas batalhas. Com seu desejo imortal e avassalador, ele não se importa com a estratégia, só com o sangue. E as lutas são ganhas não pelo mais poderoso, mas pelo mais esperto.

Capítulo 7

  - Ele o prendeu em uma gaiola, logo depois de uma ponte. Eu vou até lá com você, para ajuda-la. Não sei como ele fará para te prender, para que você assista sem retaliações a morte do seu humano – engoli em seco, pela leveza das palavras de Atenas – Mas esteja preparada para qualquer coisa. Seu pai lhe ensinou a lutar, não?
  - Sim. Treinei durante a infância e adolescência, mas pensei que nunca precisaria usar. – dei de ombros.
  - Um erro. Nada aqui é preventivo, tudo aqui é premeditado. Seu pai é um sábio, agradeça a ele depois. – assenti.
  - O que faremos agora?
  - Que tal uma visitinha de amigos a Ares? – e sorriu triunfante.

--#--

  Chegamos ao palácio de Ares pouco tempo depois. Andamos lentamente, nos espreitando, para nos esconder. A surpresa é o melhor ataque.
  - Ali está. – Atenas apontou para frente. Mirando aquele local, eu vi . Preso, engaiolado numa cela, como prendem leões. Observei seus olhos, forçando minha visão pela distancia. Seus olhos sempre foram seus espelhos, pois mostravam tudo que ele estava sentindo. E agora ele estava sofrendo, eu podia ver, como quando entrou na gratidão. Ou... Ou até pior que naquele dia.
  O que me distanciava dele era somente uma ponte.
  - Vou lá – murmurou para a deusa ao meu lado, já saindo do meu esconderijo e correndo em direção ao mortal.
  - Pequena Héstia, cuidado! – ainda gritou Atenas em resposta – Esteja preparada para tudo!

  Eu nem prestei muita atenção em suas palavras. Já corria e corria, visando somente tirar de lá. O meu humano. Foi segundos antes de eu avançar contra a ponte, que me avistou e começou a gritar:

  - , , PARE! Isso é uma armadilha!

  Mas já era tarde demais. Encarei com um olhar suplicante e esperei minha queda. A ponte era uma armadilha. Quando eu dei poucos passos sob ela, a mesma se abriu e tudo que eu pude ver abaixo de mim era fogo.

Capítulo 8

  Minha queda parecia lenta. Como se tudo estivesse em câmera lenta. Abaixo de mim, faltava pouco para o fogo. Ei, fogo! Com tamanho desespero nem havia pensado antes, mas eu domino o fogo!

  Quando Ares colocou o fogo ele não imaginou que a deusa em questão tinha poder de controlá-lo. Um imortal, como diz o próprio nome, não morre. A intenção dele era fazer com que o fogo parasse a ação da imortal e a prendesse enquanto Ares matava o humano na sua frente.

  Ele só não pensou que a deusa podia controlar o fogo, que a deusa poderia ser eu. Na verdade, essa própria ideia me demorou a ocorrer. Olhei fixamente para o fogo e me concentrei. Falei com ele, o chamei, pedi permissão, e prontamente as chamas responderam a mim. Levantei minha mão devagar, e logo depois o braço, fiz a mesma coisa com a outra mão e braço e controlei o fogo.

  Segurei com a força do pensamento e os braços estendidos o fogo no ar. Subi de volta a superfície, com ajuda do fogo e procurei Ares rapidamente. Logo o encontrei com o olhar. Devia ter chegado quando a armadilha funcionou. Desviei meu olhar para Atenas e assenti levemente com a cabeça. Era como se passássemos o plano por telepatia. Ou formulássemos um.

  Concentrei novamente no fogo que estava em minhas mãos e encarei Ares com um sorriso triunfante. No milésimo de segundo depois, o fogo já estava atingindo o deus da guerra. “Prenda-o, querido, prenda-o” pedi ao fogo. E ele, sempre muito obediente, fez exatamente o que eu pedi.

  Encarei , do outro lado da ponte, que não mais existia. Do lado oposto ao que eu estava, sem nada que os unisse. Era hora de clamar pelo vento. O chamei e o pedi ajuda. Ele, sempre atencioso, com suas brisas suaves, me levou até lá perto de , flutuando.

  Em pouco tempo, estava ao seu lado. Finalmente. Sorri para ele, e ele respondeu com um olhar brilhante, um pouco confuso pelo turbilhão de informações e novidades. Tateei o cadeado e percebi que não conseguiria abrir aquilo sozinha.

  Observei Atenas. A mesma estava dividindo os olhares entre o desespero de Ares e a minha tentativa de tirar dali. Soprei para ela, com ajuda do vento: “Consegue controlar ele por alguns minutos?” E a resposta veio em segundos: “Será um prazer” e assentiu sorrindo.

  Voltei-me a cela. E clamei o fogo. “Fogo, meu querido fogo, seria demais pedir-lhe mais uma ajuda? Derreta essa cela e livre meu amor”.

Meus poderes sempre eram de muita ajuda, nunca me negaram uma forcinha e dessa vez não foi diferente. A cela, aos poucos, foi se derretendo e surgiu um livre, que veio correndo me abraçar.

  - , minha amada. – falou em meu ouvido, me beijando calidamente nos lábios.
  - , querido, é bom te ver. – sorrir. – Preciso terminar por aqui. Mandar-te-ei para minha ilha, ok? Mas dessa vez chegarás seguro. Meu pai, Éolo, o receberá prontamente, pelo vento que nos une. – e me afastei com um sorriso.

  Observei Atenas, que batalhava com Ares corpo a corpo. A ajudaria, assim que estivesse seguro longe dali. “Vento, leve para a nossa ilha? E diga ao papai que é humano que eu esperei por toda minha vida”
  Dei um beijo de despedida em , o vendo se afastar com o vento. Com ajuda do fogo, voltei para perto de Atenas e Ares no momento em que Atenas jogava o outro deus para longe com um chute. Sorri para ela e perguntei se podia assumir o controle dali. Com a confirmação dela eu usei o fogo para prender Ares novamente. Ele sorriu desafiadoramente.

  - É um prazer te conhecer Ares, embora sinta que você não possa dizer o mesmo. – e ri vitoriosa.

Capítulo 9

  Cheguei em casa feliz por derrotar Ares e reencontrar meu amor. Deparei-me com ele conversando com minha mãe animadamente. Pigarreei, chamando atenção dos dois:
  - Puxando o saco da sogrinha, hein! – soltei, o que o fez ficar envergonhado. Só eu mesmo para me sacanear.
  Ele veio até mim e me abraçou fortemente, sussurrando em meu ouvido frases como: “Estava com saudades”; “Te amo”; “Minha linda deusa”. Deu vários selinhos também.
  - Filha, estava contando o quanto você foi forte e usou seus poderes corretamente. Os olhos dele brilhavam ao me contar cada coisa que aconteceu – e riu. E o momento “vamos deixar o mortal envergonhado” continua!
  - Eu nunca entendi o porquê de ter os poderes, achei que nunca os usaria – dei de ombros.
  - Eu sempre disse que teria motivo – meu pai apareceu, já falando.
  - É, Atenas concordou com você também – e sorri – Agora, também, pouco importa tudo isso, eu já tomei minha decisão.
  - E qual seria ela? – inquiriu Éolo preocupado.
  - Eu vou abster dos meus poderes e viver na Terra com . – e os rostos dos meus pais deuses se contorceram em uma careta.

Capítulo 10

  Fora difícil convencer meus pais daquilo. Tão difícil quanto lutar com Ares, talvez mais. Meus pais eram ossos duros de roer, ou poderes invencíveis de se quebrar, depende do seu mundo. A questão era que mostrar a eles que aquela era minha decisão final e, mais importante, que era o que eu queria de verdade, foi uma tarefa árdua.

  Mas, o quão é bom dizer que eu lutei para conseguir? Eu lutei e consegui. Esse sentimento é muito bom. Só não barra, é claro, a alegria de ter ao meu lado para sempre. Porque sim, eu não me importava com meus poderes, meus controles sobre o vento e o fogo, ou sobre a vida invejável que os lumes desmentiam. Tudo aquilo que fazia parte de minha vida antes de conhecer o se tornou passado ou, ao menos, uma pequena barreira fácil de ser quebrável. Porque, sim, eu agora tenho certeza, o amor vale a pena. Não pense, não hesite nem um segundo nesta questão. Eu, uma deusa que viveu mais do que vocês, sei a resposta. A descobri.

  Não se iluda se uma vez não deu certo. Não era para dar. Não era realmente amor, aquele amor que todas as mulheres – imortais ou não – esperam desde crianças. Vão vir outros e um, com plena certeza, será o certo. E, você, mais do que ninguém, saberá que é o certo. Então, a partir daí, não tenha dúvida, viva por esse amor. Assim como eu faço todos os dias.

  - Seu país é lindo, . – sorri para ele, enquanto caminhávamos num belo jardim florido, todo colorido pelas flores germinadas. Ele me olhou, retribuiu o sorriso e apertou nossas mãos umas contra as outras, fazendo com que ficássemos um de frente para o outro.
  - Agora posso realizar o que sempre quis, desde minha despedida. As flores. Ou, como prefiro chamá-las, seu espelho. – e arrancou uma flor do jardim. Cheirou-a e em seguida me fez sentir o perfume dela também.
  - Então quer dizer que você está rodeada de ’s? – brinquei com ele, grata por mais um elogio. Ele concordou lentamente com a cabeça, enquanto depositava a flor que havia pegado nos fios de meus cabelos presos num coque.
  - Sim, e é isso que torna este momento o melhor da minha vida. – acariciou meu rosto ternamente e, em seguida, encostou seus lábios nos meus. A melhor sensação da minha vida.

Fim



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