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#007 Temporada

Spring Day
BTS




Deixe-o ir

Escrita por Maraíza Santos | Revisada por Mariana

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  O sol estava se pondo quando voltei ao Lugar Nenhum. Era perto da loja de conveniência do Tio Gourmet, o apelido que carinhosamente eu e meus colegas de sala o batizou. Lugar Nenhum era apenas um banco de praça perto da estrada que ia até a cidade, debaixo de um pé de manga. Ainda usava o uniforme da escola, a qual era uma saia cinza simples, camisa branca e um colete preto. Eu segurava os sapatos desconfortáveis nas mãos e estava com meus pés cheios de barro. Ficar em Lugar Nenhum observando os raros carros passarem era um passatempo antigo que eu sempre compartilhava com . Eu os via e ele os escutava. Porém, ele não estava ali como de costume.
  Lá tínhamos as conversas mais estranhas. Uma vez, quando passamos vários minutos em silêncio, ele disse:
  — Você é linda.
  Lembro de olhar para ele cética. tinha um sorriso nos lábios como se soubesse o ultraje do meu rosto. Embora estivesse com a face virada para frente, eu sabia que ele prestava atenção em mim.
  — Você é cego, . — e eu falava de forma literal.
  Seu sorriso se alargou quando ele disse:
  — A beleza vai muito além do que os olhos veem, .
  — Besteira — retruquei inconformada — Se eu fosse, teria me chamado para ir ao festival com ele.
   se acomodou no banco da praça antes de dizer.
  — é um idiota. Não sei por que você gosta dele.
  — Porque ele não vem com essas filosofias falcatruas que você tem.
  — Agora você me ofendeu. — mas ele sorria. nunca parava de sorrir.
  Meu peito parecia pequeno demais para o coração. A sensação de saber que ele não estava ali me doía. Por que ele tinha que ir embora?
  Cruzei os braços quando a brisa suave do fim da tarde me atingiu. Estremeci e comparei aquele clima frio e raro da primavera com minha alma. Com longe, sempre era inverno. Eu estava sozinha como as folhas de outono que caíam da árvore sem rumo.
  Ri com a ironia da vida. Apesar de sempre provocá-lo por suas frases poéticas e filosóficas profundas demais para alguém da nossa idade, lá estava eu fazendo a mesma coisa.
  Conheci no primeiro ano do ensino médio. Boa parte dos alunos da minha escola eram da mesma turma desde o primário, por isso, o aluno que vinha de uma cidade grande era uma novidade para todos. Algumas meninas cochichavam falando de quão bonito o novato era, mas não entendiam o porquê dele usar óculos escuros quando o sol mal aparecia no inverno. Foi mais ou menos aí que perceberam a sua bengala e coraram em constrangimento.
   era cego, porém sua deficiência não o fazia ser amargo. Dificilmente o vi reclamar da sua condição. Ouso dizer que ele até adorava ser mimado e possuía várias piadas internas que compartilhava comigo. Muitas pessoas que acreditavam que, por não ver, era um idiota. A verdade era que ele era o mais inteligente de todos nós. Perdi as contas de quantas vezes o vi aproveitando-se da sua condição para conseguir favores que nós reles mortais não conseguiam. É óbvio que a vida não era só flores. Já houve aulas de literatura, por exemplo, em que a professora distribuiu os livros que iríamos estudar, esquecendo-se da versão em braile de . Quantas vezes eu tive que ler o assunto para ele apenas porque sua deficiência o limitava? Ainda assim, era o mais inteligente da turma. Seu raciocínio era impressionante.
  Eu o desejava perto como nunca havia desejado alguém. Queria tê-lo ao meu lado. Sem ele, os dias de verão não faziam sentido. Por que ele não podia voltar para mim?
  Engoli o choro e vesti o casaco que estava dentro da minha mochila. Ficar ali não ajudava na minha condição. Cada vez mais eu reconhecia a saudade que imperava em mim, mais eu queria estar com ele.
  Muitas vezes eu havia cruzado aquela estrada com ao meu lado. Eu segurava em seu braço como se estivéssemos no século 19 e ele me fazia esquecer dos dramas da adolescência. era inatingível, nunca havia o visto abalado, apesar de ter diversos motivos para isso.
  — Você já se perguntou como seria sua vida se tivesse nascido em outra cidade, ? — ele perguntou uma vez — Será que teríamos nos conhecido?
  Parei para pensar um pouco, mas a ideia de nunca ter cruzado com parecia improvável.
  — Eu seria a mesma pessoa que você conhece.
  — Acha que a gente ia se encontrar?
  — Claro, .
  Ele riu em escárnio.
  — Admiro o quão certa das coisas você é. Queria ter essa… Qual é a palavra?
  — Determinação.
  — Essa é a palavra para ‘cabeça-dura’?
  Dei um tapa em seu braço e ele gargalhou.
  — É tão divertido lhe provocar, . Uma vida sem te conhecer ia ser muito chata.
  Meu peito encheu-se de uma quentura gostosa ao ouvir aquilo.
  — Eu sou tão importante assim para você?
  Foi uma das raras vezes que vi hesitar antes de falar. Seu semblante amoleceu-se e ele ficou mais sério do que o costume. Seus óculos escuros cobriam boa parte do rosto e sua face estava virada para frente; ainda assim, eu pude captar seus sentimentos conflituosos no tom afetado da sua voz quando ele disse:
  — Você não sabe o quanto.
  Comecei a correr em direção a minha casa em desespero. Tudo naquela cidade me levava a . Ele havia se impregnado em cada canto do município se tornando parte de um todo.
  Ouvi alguém gritar meu nome ao entrar pela porta dos fundos da minha casa, porém ignorei-a. Subi as escadas depressa, tropecei, entrei no meu quarto e fechei a porta com força. Com a mão esticada, procurei debaixo da cama minha caixa com todas as lembranças que tinha do . Nela havia diversas fotos nossas desde eventos na escola como o festival de primavera do ano passado. Ele sempre parecia gargalhando ou fazendo uma pose engraçada.
  Eu odiava pelo simples fato de não poder viver sem ele.
  Marchando até o quintal de casa para pôr um fim naquela dor insuportável que meu melhor amigo deixou em mim.
  De joelhos fincados na grama, meus olhos ardiam de tanto chorar. Havia passado na cozinha de casa e pego uma caixa de fósforos. Eu ia dar fim aquilo.
  As fotos estavam organizadas em uma pilha. Acendi o fósforo e observei a primeira imagem em que nós dois tiramos na cabine do shopping da capital. O dia em que cometi o maior erro de todos.
  Estávamos à procura de um presente para sua irmã, quem o criara desde o acidente que o fez perder a visão. Ela era muito jovem e bonita, eu a admirava pela sua determinação e amor pelo irmão.
  Ele segurava-me pelo ombro e estávamos estranhamente em silêncio. Naquela ocasião eu queria contar-lhe um segredo, porém algo dentro de mim dizia que não era uma boa ideia. Ainda assim, quando paramos para tomar um sorvete, eu confessei:
  — Eu beijei ontem depois da aula.
   ficou estranhamente sério e calado. Eu sabia que sua reação não seria positiva, porém eu acreditava que era algo que eu pudesse lidar. Seu silêncio, no entanto, não era o que eu esperava.
  — E foi bom? — sua voz saiu cuidadosa.
  Não pude conter o sorriso ao afirmar que sim, havia sido bom.
  — Que bom — disse ele finalmente.
  Encarei-o por longos segundos esperando ouvir alguma coisa. Um sermão, uma frase desconfiada, perguntas sobre o que ia acontecer agora… Alguma coisa.
  — É só isso? Não vai me dizer nada?
   continuou calado, embora tenha apertado os lábios um contra o outro controlando sua língua.
  — O que você quer que eu fale? Parabéns? — replicou ele e abocanhou seu sorvete de baunilha.
  — Qualquer coisa. Eu tenho falado do meu crush com o há tempos…
  — Não sei o que você vê nesse babaca… — resmungou .
  — Por que você não gosta dele, hein? — perguntei finalmente.
  Ele continuou quieto ignorando minha pergunta.
  — Nunca vou te entender, . — resmunguei impaciente.
  — Ele apostou quinhentas verdinhas que vai tirar sua virgindade antes do final do ano letivo.
  Congelei, sem saber o que dizer. O choque deixou-me inerte. As palavras dele entraram como facas em meu peito. Sentia-me traída, usada.
  — Como você sabe disso? Há quanto tempo sabe disso?
  — Eu apenas sei. — ele enxugou a boca com o guardanapo — É uma pena você ser tão ingênua em relação a ele.
  Pisquei, as lágrimas marcando minha bochecha e declarando uma ferida que se abria cada vez que eu escutava falar sobre aquilo com frieza e deboche.
  — Por que você não me disse antes?
  Ele se levantou desajeitado e agarrou sua bengala.
  — Você ia se sentir menos machucada?
  — EU TINHA DIREITO DE SABER! — gritei desconhecendo meu tom descontrolado. — Você diz que é meu amigo, mas nunca nem mesmo ia me dizer o que estava acontecendo.
  — Quem ficou correndo atrás do filho da mãe foi você, . Pensei que não iria acreditar em mim. — ele deu os ombros com displicência. — Não é grande coisa, também. Perder a virgindade é besteira. Eu só sei que eu estava certo esse tempo todo. Você deveria me escutar mais.
  Olhei para ele sem entender como o cuidado e atenção que ele dava a nossa amizade tinha se desintegrado em espaço de segundos.
  — Você é um escroto. — falei sentindo meus braços tremerem de raiva — Um lixo que só pensa em mostrar que está certo, não é? Nada mais importa nessa sua mente egoísta. Te odeio.
  Lembro de sair do shopping vermelha de ira e detestando todos os homens que existiam na face da Terra.
   tinha errado feio comigo. Passei a semana seguinte sem olhá-lo ou falar com ele. Era como se ele estivesse morto para mim. No entanto, ele tentou conversar várias vezes e eu o ignorei. Lembro de ouvi-lo gritar e implorar por perdão, mas meu orgulho estava ferido demais para deixá-lo sair tão fácil daquela briga. No futuro, eu o perdoaria por ter sido tão prepotente.
  Um futuro que nunca chegou.
  Duas semanas depois da nossa briga, foi a capital fazer uma cirurgia, ele iria tirar as amígdalas. Era algo simples, nada que poderia colocar sua vida em risco. Porém, nunca chegou lá. No meio do caminho, um motorista de caminhão dormiu no volante e entrou na contra-mão da sua irmã que dirigia. Ele morreu na hora e eu nunca pude perdoá-lo.
  — , o que você está fazendo? — perguntou minha mãe.
  Emergi-me das lembranças ao senti-la retirar o fósforo da minha mão com violência.
  — O que está acontecendo com você, querida? — disse preocupada.
  Voltei a chorar copiosamente e abracei-a com brutalidade.
  — Por que ele tinha que ir, mamãe? Por que eu não pude dizer adeus? Eu quero morrer junto, mamãe. Quero encontrá-lo no além.
  — Oh, querida…
  Foi nesse dia que entrei em colapso. Perder foi uma das experiências mais insuportáveis que senti. Descobri meses depois por sua irmã que ele estava apaixonado por mim. Os sinais eram óbvios — seu ciúme em relação a , as constantes indiretas que ele me mandava… Eram tantas coisas implícitas que eu me negava a ver!
  Hoje, depois da sua morte, eu podia voltar a Lugar Nenhum sem sentir-me afundar na dor. Eu havia deixado ele ir. O dia de primavera logo chegaria. Se havia vida após morte, estava em algum lugar de descanso muito melhor do que o banco em que compartilhávamos nossas conversas. Eu o encontrarei no futuro e nossos dias serão para sempre primavera.

  n/a: Olá, pessoinha! Muito obrigada por ter lido a minha songfic baseada em Spring Day do BTS. Confesso que foi muito mais difícil do que eu pensei e que, inclusive, essa é a segunda versão da história, sendo a primeira algo completamente diferente. Espero que tenha gostado! Deixe seu comentário com sua opinião, críticas e etc. É muito importante pra mim.
  Nos vemos depois, até mais!