Chills

Escrito por Júlia Oliveira | Revisado por Paulinha

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  Suspirou novamente, quem tinha tido aquela porcaria de ideia? Processaria a pessoa assim que tivesse condições de sair de casa, com toda certeza.
  Com mais um suspiro, deixou com que a calça jeans tampasse-lhe a canela por completo, voltando a sentar na bancada feita – estrategicamente – debaixo da janela gigantesca do quarto, onde se sentava todos os dias.
  Obviamente, as janelas do quarto eram viradas para uma parte isolada do terreno, mesmo que ela quisesse observar o movimento incessante de pessoas: não poderia, sua visão se resumia a um jardim, que parecia abandonado pelos moradores da casa de trás, que na verdade: suspeitava também estar abandonada.
  Claro que podia andar pela casa, mas não gostava. Sentia o olhar aterrorizado dos empregados, que haviam acompanhado toda a tragédia pela TV. Por que aquelas pessoas eram tão ignorantes? Aquilo tudo era preventivo, ela era suspeita, não criminosa. De qualquer maneira, preferia evitar: saía do quarto apenas quando seu pai estava em casa para defendê-la, ou quando descobria que Ana estava em casa para conversar. Os parentes, que haviam se mostrado maravilhosos familiares, em sua maioria eram compreensivos e a visitavam periodicamente em seu quarto. Por que teria que sair de seu quarto naquelas condições? Para receber o olhar acusador de Madame Meyer? Não, preferia evitar.
  Ouviu os três toques na porta que indicavam o horário do café. Os toques eram leves e simultaneamente, firmes. Eram toques característicos de seu pai.
  Pulou correndo esbaforida para a porta, onde encontrou o delicadíssimo sorriso do pai.
  - Bom dia, querida – beijou-lhe a testa.
  - Bom dia, papai. – riu, adorava receber carinho do pai. Era o que na verdade, a mantinha sã. Deu um sorriso enquanto o pai a guiava pelas escadas, e os criados, como sempre, acontecia na presença do senhor , a cumprimentaram com sorrisos falsos.
  - Ana logo chegará. – ele anunciou a garota não conteve o sorriso, adorava as conversas com a psicóloga. – talvez antes do almoço, mas ela não poderá ficar por muito tempo...
  - Ela tem outras pacientes. – a garota completou, enquanto sentava na imponente mesa de vidro em que as refeições eram servidas. – Até em estados piores que o meu.
  - Você não é louca. – o pai sorriu, enquanto uma das criadas enchia-lhe a xícara com café.
  - Diga isso para o governo – a garota deu de ombros, já não ligava mais pra isso.
  Era até engraçado. Dois ou um ano atrás teria um surto se soubesse que alguém a chamava de louca, hoje já nem ligava, teve provas o suficiente para descobrir que a opinião alheia, na verdade, não lhe valia de nada. Não se importava com mais nada, nem com que pensavam dela.
   e o Pai conversaram mais um pouco sobre a rotina da garota na nova casa. Um novo país que a garota nem podia conhecer, mas não se importou: sabia que aquela condição era temporária, e que o pai estava trabalhando arduamente em tirá-la dali. Depois, o pai se despediu com outro beijo, enquanto a menina voltou a seu quarto e seu maior companheiro: o jardim abandonado.
  Deveria ter sido belo quando cuidado. Algumas plantas trepadeiras desenhavam figuras abstratas na parede branca, a mesma possuía detalhes de mármore sólido, intacto. Algumas flores que ainda resistiam ao tempo, pouquíssimas, davam um pouco de cor e alegria ao emaranhado de marrom e verde musgo, que se formava pelo clima de Londres, talvez devesse pedir ao pai que comprasse o terreno, assim ela poderia passar alguma parte de seu tempo ajeitando o jardim.
  Seu tempo era desperdiçado com coisas de seu interesse. Gostava de pintar, tocava alguns instrumentos e lia compulsivamente. Apesar de não poder ter redes sociais, passava algum tempo navegando na internet. Via alguns DVDs e ouvia músicas de todos os gêneros imagináveis, adicionar jardinagem a interesses não faria tão mal.
  Observou o jardim no que lhe pareceram horas. As coisas por ali pareciam nunca mudar, mas não se importava: adora o jardim do jeito que era.
  Ouviu dois toques na porta branca do quarto. Soltou um “Pode entrar” seco enquanto saía da janela, seu próprio globo, onde ela estava segura.
  Encontrou os cabelos curtos e bem cortados de Ana, sua psicóloga.
  - Bom dia, – cumprimentou-a, ainda com a porta aberta. – Deseja que conversemos por aqui mesmo...
  - Se não se importar – a interrompeu, - podemos conversar na sala, se não for um incomodo.
  - Claro que não, querida – a mulher sorriu, enquanto caminhava em direção ao andar de baixo: onde a sala ficava.
  A sala, na verdade, era um lugar meio isolado da casa, onde os empregados raramente entravam se não fosse para servir algum visitante. gostava do local pela vista encantadora que tinha do jardim de sua própria casa, esse era cuidado por um jardineiro, então seu interesse não era tão grande no mesmo.
  Ana se sentou na grande poltrona da sala, onde iniciou a conversa com sobre suas novas observações sobre seu próprio comportamento. Era fascinada pela garota, que era muito inteligente, mesmo sendo proibida de ir para a escola desde o ano passado.
  A garota e a mulher sempre conversavam ativamente. Ana tinha total certeza que não tinha nenhum problema psicológico, mas o governo insistia em mantê-la sobre vigilância constante de um profissional. E os advogados insistiam de que essa era uma forma de diminuir sua pena, apesar de todos já terem quase certeza de que a garota era inocente, a promotoria ainda era persistente em pedir a prisão domiciliar de , alegando que ela era um risco a humanidade e a todos que a cercavam.
  Depois de duas horas de conversa, uma das criadas passou, avisando que o almoço já estava servido. Ana se despediu docilmente de , enquanto a garota – que durante as refeições que o pai não estava em casa, preferia comer no quarto – subia para o quarto.
  Todas as refeições da casa dos eram especialmente controladas para que não se sentisse excluída de alguma forma. Podia comer comida da mais alta qualidade e de qualquer lugar do mundo se desejasse, às vezes sentia vontade de comer a comida que sua mãe fazia: mas logo surgiam com qualquer doce que a fizesse esquecer tal vontade.
  Voltou à janela, sorridente enquanto a voz de Tom DeLonge – no Angels and Airwaves, vale frisar – ressoava pelas paredes. A casa estava em perfeito silêncio, parecia que ninguém estava ali, a não ser pela música. O jardim continuava perfeitamente quieto, mas havia uma pequena movimentação na casa, como se os moradores finalmente tivessem surgido, do nada.
  Um homem enorme surgiu em uma das laterais da casa, empunhando uma pá e o que julgou ser uma picareta. A garota puxou as cortinas de seda, tentando desaparecer. Sua única certeza era: ele assiste jornal. Na verdade, a qualquer um que era apresentada desde o fatídico crime – que ela não cometera – essa era sua única certeza ele/ela viu o jornal. Tinha vergonha de sair de casa antes mesmo de receber a tal pena preventiva.
  Atrás do homem vinha o rapaz, usando uma camisa surrado do Fall Out Boy. Sentiu suas bochechas corarem instantaneamente, o rapaz era belíssimo. Parecia-lhe alto e forte, e usava all stars surrados e sujos, enquanto tentava encontrar algum caminho por entre os ramos gigantes das plantas. Deduziu, pela semelhança, que os dois eram pai e filho. Possuíam o mesmo nariz e a cor extremamente azul dos olhos. Mas, diferente do homem, o rapaz não se contentava em observar apenas o jardim: tinha que olhar tudo em volta, inclusive a pequena brecha entre as cortinhas que usava para observar as duas figuras.
  Seus olhares se encontraram. sentiu suas bochechas formigarem enquanto aqueles olhos ainda a encaravam, docilmente. Ele não via jornal? Perguntou-se em silêncio, enquanto o rapaz a encarava com um meio sorriso, como se estivesse feliz em ser observado. se escondeu completamente dessa vez, com a respiração irregular: parou de observar o jardim e o rapaz, enquanto tentava colocar as ideias em ordem.
  Por sua vez, o rapaz não parou de encarar a janela. Talvez a garota aparecesse novamente, afinal: já tinha a certeza de ter visto algo muito próximo a um anjo a observá-lo. Coçou a cabeça, bagunçando a cabeça enquanto esperava a volta da garota à janela.
   respirou, tomando um gole do copo de água que deixara sobre a escrivaninha. Talvez devesse olhar mais uma vez. Suspirou, tomando coragem pra dar mais uma pequena bisbilhotada.
  Encontrou-se com os olhos novamente. Arregalou os olhos e se escondeu novamente.
  Por que ela tinha se escondido? Será que era tímida? Medrosa? Talvez assustada. Suspirou, ainda encarando a janela, agora coberta por uma leve cortina. Desistiu depois de alguns segundos encarando a janela, ainda na esperança que a garota surgisse.
  - , - ouviu o pai o chamar, deu um pulo com a surpresa – que cara de quem viu um fantasma é essa?
  Balançou a cabeça, tentando tirar os pensamentos estranhos de sua cabeça.
  Que menina era aquela?

* * *

  Encostou-se na varada, enquanto sentia o suor escorrendo-lhe a testa. Reformar aquele jardim não era a atividade de verão que tinha imaginado pra si mesmo, mas era o que havia. Já tinha tirado boa parte do entulho e os ramos podres, e a piscina estava quase toda limpa de volta.
  Deixou com que seu olhar cansado vagasse por aí, caindo na janela da casa de trás. Casa era apelido, aquilo era uma mansão: havia plantas trepadeiras subindo por toda lateral. A piscina era enorme e parecia haver mais cômodos que três de sua própria casa.
  Não que estivesse interessado na casa, estava em um dos quartos do segundo andar, mais precisamente naquele em que a garota estava há dois dias.
  Com a bagunça da mudança mal tivera tempo de observar a quase inexistente movimentação na casa. Apenas descobrira que o proprietário da mansão era também proprietário de cinco carros, e que só usava um. Saia de manhã e voltava ao final da tarde, julgou ser o pai da garota, pelas semelhanças.
  Enquanto sozinho em seus próprios pensamentos, acabou por encontrar a mesma garota andando em círculos com um livro irreconhecível na mão. Ainda usava calças jeans e uma blusa de mangas cumpridas listrada. Os cabelos estavam amarrados em um rabo de cavalo alto, descalça e com uma saliência estranha no tornozelo direito, mas escondida pela calça.
  Ela era tão baixinha e parecia inocente. Sua cor estava bem pálida para o começo do verão: talvez fosse compulsiva com os estudos e talvez até um pouco anti-social. Ficou a observando andar em círculos enquanto lia o livro, atenciosamente: era encantador a forma com que, depois de ler certa página, ela parecia recitá-la em voz alta, como se fosse algo que ela não deveria esquecer.
  Depois de alguns minutos – que se arrastavam para – a garota pareceu desistir de memorizar algumas palavras do livro e o lançou em uma poltrona próxima a ela, se sentando na poltrona ao lado, tapando o rosto com as mãos, bastante cansada.
  Não conteve um sorriso quando viu sura expressão entediada perfeitamente esculpida naquele rosto angelical. A garota soltou um suspiro tão forte que seus ombros se movimentaram, fazendo-a olhar pra frente, encontrando com o sorriso galanteador do novo vizinho.
  Quis se esconder novamente. Era uma criminosa até para os criados de sua própria casa, imaginem para quem nem a conhecia. O corpo de se arrepiou tenso, imaginando os milhões de pensamentos sobre ela que o rapaz poderia estar tendo, deixando com que seu rosto tomasse uma leve expressão de pânico.
  Ele percebeu sua tensão imediatamente, e passou a encará-la da forma mais doce que conseguia. Primeiramente, não conseguia encarar uma menina de tamanha beleza com raiva, e segundo, por que achou que a garota estava nervosa com seu velho hábito de encarar meninas com sorrisos maliciosos no rosto.
  Por que ele esta sorrindo pra mim? Não viu no jornal? Sua tensão fora diminuindo gradativamente enquanto ele sorria tão docilmente, sentia que podia ser ela mesma com ele: e não encarnar uma doente mental para não ser condenada. Talvez ele soubesse que ela era normal, e inocente.
  Aliviou-se assim que a viu perder a expressão tensa, mas não quis parar de encará-la daquela forma: era tão bela que o fazia arrepiar, mesmo com o bronzeado que aparentava não encontrar o sol por meses, ela era terrivelmente encantadora.
  Ouviu alguma empregada chamando-lhe para o almoço enquanto ainda mantinha o contado com o rapaz dos olhos , quis responder-lhe dizendo que comeria mais tarde: mas pensou melhor e desistiu.
  Seus olhos terrivelmente mexiam de mais com ela.

* * *

  Pôs-se em frente à janela, observando o novo jardim da casa de trás. Irreconhecível: a piscina finalmente era visível, as flores finalmente possuíam vida e a casa era habitável. Era estranho: sempre tinha visto a si mesma naquele jardim, abandonada, tristonha, melancólica... E agora, ao contrário dela, ele estava se concertando, melhorando pouco a pouco.
  Suspirou pesadamente, ajeitando a calça jeans para que tampasse aquele aparelho horrendo. Estava doida pra se livrar daquilo e poder correr pra escola, reencontrar alguns amigos e visitar os lugares que estava com saudades. Ninguém sabia, mas havia um caderno debaixo do colchão com listas de tudo que faria depois que fosse libertada: primeiramente, pediria uma festa na casa de campo na França, o lugar que mais sentia falta. Depois, planejava passar uma temporada na casa da avó, alguns outros parentes como a Tia Alyson, que não a visitava por falta de tempo...
  Planejar tudo aquilo enquanto o jardim era reconstruído era um purgatório. Sentia que nunca se recuperaria da maneira que o jardim estava se recuperando.
  Ouviu as cinco batidas rotineiras em tardes de sexta feira, riu-se sozinha com a previsibilidade da amiga.
  - O que tanto olha por essa janela? – perguntou, havia entrado sem nem esperar a resposta de . – Não me diga que é o ra...
  - O Jardim. – respondeu, interrompendo-a de uma maneira um pouco rude. – Temos tanto em comum.
  - Já te contei que às vezes você é um enigma? – brincou, sentando-se ao lado da amiga e brincando com os cabelos de . Apesar de não receberem uma quantidade satisfatória de sol, eram belíssimos. – Em que você se pareceria com um jardim abandonado?
  - Fomos abandonados, fadados a uma eternidade presa – soltou um sorriso fraco enquanto a amiga lhe fazia uma trança.
  - Ninguém te abandonou, . – sorriu, pegando o celular no bolso e revelando algumas fotos de e seus amigos.
  Alguns desapareceram assim que as notícias começaram a surgir pela mídia. Os verdadeiros, como , nem haviam mudado. Ainda a visitavam periodicamente, a freqüência diminuía de acordo com a época de provas ou férias: mas eles sempre vinham, sabiam o quão importante era receber visitas para .
  - E se for desse modo, pode apostar que você vai se recuperar da maneira que ele esta se recuperando. – sorriu – Olhe só, as bromélias estão belíssimas.
  - Aquele rapaz – apontou com o dedo indicador, ele estava muito concentrado para dar sua bisbilhotada diária em . – Ele tem trabalhado nesse jardim arduamente. De manhã e tarde, parece que esta vivendo pra ver esse jardim refeito.
  - É um gesto bonito, não acha? – a amiga se sentou, largando o cabelo de .
  - Belíssimo.
  Passaram horas conversando sobre coisas banais. nunca mudara o conteúdo de suas conversas por causa do isolamento de , era comum vê-las conversando sobre a vida de alguns colegas ou de maquiagem, mesmo que nunca tivesse uma razão concreta para fazê-la. O sol se punha lentamente enquanto descia as escadas, despedindo-se da outra.
   subiu novamente as escadas e se pos na janela, ainda sorrindo pelas piadas estúpidas que acabara de ouvir.
  Passou os olhos pelo jardim, procurando a cabeleira do garoto e a encontrando.
  Segurava um papel, uma folha de caderno um pouco amassada, onde a caligrafia rude e grotesca exibia:
  Oi.
  Arqueou suas sobrancelhas, sem se importar com o que exibia para o garoto, que sorria da mesma forma doce que sorria sempre que a encarava. Não podia negar que amava aquele sorriso, lhe deixava calma e despreocupada de uma maneira tão intensa que era preocupante. Era como se não tivesse uma coisa na canela que a impedia de sair de casa.
  Preocupou-se, precisava respondê-lo. Levantou-se procurando por um caderno e caneta: que achou com facilidade, e escreveu.
  Oi.
  Adorava aquela normalidade falsa que criava para si mesma. Viu o rapaz sorrir de uma maneira ainda mais iluminada e escrever algo em outra folha do caderno.
  Você gosta desse jardim, certo?
  Suspirou, era tão obvio assim? Escreveu novamente.
  Sim.
  Ele soltou outro sorriso de amolecer os joelhos enquanto escrevia.
  Venha conhecê-lo de perto. Seria um prazer te apresentar a ele.
  Pânico. Seu coração batia tão forte que teve a leve impressão de escutá-lo, e contraditoriamente, sentia as bochechas perderem todo o sangue, ficando mais branca do que já era.
  Não posso.
  Suspirou talvez ele se desse por satisfeito com aquela afirmação e parasse de insistir.
  Por que não?
  Ótimo. Mais pânico. Sentiu seus joelhos amolecerem.
  Não posso.
  Escreveu novamente, deixando a folha à mostra e saindo da janela. precisava de uma abordagem melhor.
  Se ele não sabia o porquê, não era ela quem o contaria.

* * *

  - Inocente. – o pai sorriu, enquanto se sentava à mesa para o jantar.
  - Completamente inocente, não tenho a menor dúvida. – a mãe completou.
  - Quem? – perguntou, bagunçando a cabeça. Ainda nem tinha se juntado em frente à TV para ver o Noticiário, do que estavam falando?
  - , a garota da casa de trás. – Sean, irmão mais novo explicou.
  - O que tem ela?
  - Bem, filho, não vê jornal? – O pai arqueou as sobrancelhas.
  - Não, - deu de ombros.
  - Ela é a maior suspeita de matar quatorze pessoas. – a mãe explicou.
  - Não diminuam as coisas – Luke, o irmão mais velho, interrompeu – ela é suspeita de ter esquartejado quatorze caras. Queimado os corpos e deixado os... – hesitou, procurando alguma forma de dizer aquilo – os países baixos no ginásio da ex-escola dela. Ela era namorada de um deles.
  Deixou com que seu queixo caísse, quase o sentia no chão. Então, podia estar levemente apaixonado por uma assassina?
  - Mas... – engoliu o seco – então ela não deveria estar presa?
  - Está, - a mãe sorriu – apesar de ter sido inocentada pelo público, a justiça insistiu que a garota ficasse em prisão domiciliar. Não estranhou nunca vê-la fora de casa?
  Claro que tinha estranhado, mas nunca diria isso.
  - Mas ela é inocente, chamam o que fazem com ela de prisão preventiva. Como se ela fosse uma louca ou algo parecido – dessa vez fora Elounor, defensora assídua de qualquer garota – inocente e normal, tudo bem que ela é extremamente requintada e inteligente: mas é inocente. Mas afinal, , onde esteve nesses últimos seis meses?
  - Não vendo jornal? – sugeriu completamente atônito.
  - Dizem que ela fez tênis com a pele dos caras e bebeu os sangue com chocolate e morangos... – Sean brincou, recebendo um belo tapa da mãe.
  Então era isso?
  Segurou-se durante todo o jantar. Não queria citar ou entrar no assunto “A vizinha que decidimos ser inocente” novamente, pelo menos não aquela noite: não tinha digerido a informação.
  Dócil, meiga, delicada, fofa e extremante linda. Descreveria a garota daquela forma, não como uma assassina sedenta de sangue. Nunca. Apostava que era um terrível engano e que ela só estava no lugar errado na hora errada.
  Correu para o jardim sem ver o jornal. Preferia até ficar um pouco sozinho em seu próprio quarto enquanto tentava imaginar o que faria agora, tinha criado afeto por uma suspeita assassina. Precisava respirar fundo e pensar. Viu-a em sua janela usando o computador, com a língua entre os lábios levantada pra cima: completamente fofa e concentrada em alguma coisa. Às vezes aproximava o rosto à tela, como se tentasse chegar mais perto de seja lá qual fosse seu objetivo.
  Jogou uma pedra na janela da garota, fazendo-a olhar de uma forma assustada pra ele. Arregalou os olhos e quase caiu do banco que tinha na janela: como alguém podia imaginar que aquela coisinha tinha matado quatorze caras?
  Pegou o caderno que havia usado há dois dias pra se comunicar com ela, sabia que desde então ela havia parado de prestar tanta atenção nele e no jardim, parecia até evitá-lo.
  Eu sei de tudo.
  Suspirou, enquanto via o rosto da garota empalidecer, sentindo todo o seu sangue descer para os pés, enquanto seu coração batia freneticamente.
  Posso ir aí?
  Escreveu novamente, sentindo o peito dobrar de tamanho e o nervosismo crescer tanto, que quase pudesse tocá-lo.
  Se sim, pisque sua luz duas vezes.
  A garota quase riu, ele era engenhoso.
  Se não, pisque uma.
   suspirou pesadamente, sentindo todo o peso do mundo em suas costas. Viu a garota levantar e sair de seu campo de visão, e logo após viu a luz piscar duas vezes.
  Largou o caderno em qualquer canto enquanto caminhava a passos largos para a casa da garota.

* * *

  

Caminhou lentamente até a porta da frente. Abriu-a com medo de nem saber executar a ação, mas encontrou o rapaz em pé à sua frente.
   - Entre. – sussurrou, mesmo que esse não fosse seu objetivo. Falar bem baixinho era uma das conseqüências de tanto tempo no tribunal, ainda mais com desconhecidos.
   pediu licença enquanto era guiado a passos curtíssimos – ela era realmente baixinha – até uma escadaria imensa, logo após, encontrou-se em um corredor azul bebê e entrou na última porta do corredor: um quarto muito bem iluminado e cheio de livros, CDs, cadernos, DVDs... Milhões de coisas espalhadas pelo chão e a cama gigantesca. Além da penteadeira e da escrivaninha.
   - Se não se importar de conversarmos por aqui – a garota sorriu, apontando-lhe uma poltrona florida extremamente confortável no canto do quarto.
  Enquanto se sentava, parou pra pensar: e se ele estivesse ali para acusá-la? Linchá-la? Repetir o fato que ela, supostamente, fez? Não. Era impossível! Ele mantinha a expressão serena e compreensível de todas as vezes que olhara para ele, por que ele seria um assassino ou alguém que não acreditava em sua inocência?
   - Você é inocente. – acabou com o silêncio, encarando-a naquele moletom surrado do Pink Floyd.
   - Bem, - ela suspirou – eu sei. Mas obrigada. – sorriu levemente, enquanto sentava-se na bancada debaixo da janela – Só falta convencermos o governo disso. – ela deu de ombros, cruzando as pernas.
   - Qual seu nome? – perguntou, fazendo-a corar intensamente e arquear uma das sobrancelhas.
   - Você, provavelmente, já sabe. – encarou-o, confusa.
   - Prefiro saber de você. – ele sorriu, agora virando o corpo para o lado da garota, estava a três passos de distância dela.
   - . – suspirou, sentindo as bochechas corarem – E o seu?
   - . – respondeu, ainda sem cortar o contato visual.
   - É um belo nome, - ela sorriu, colocando a franja para trás da orelha.
   - Não tanto quanto o seu, devo dizer.
  O silêncio se instalou. percebeu o quanto o quarto era quentinho e aconchegante, sentia-se em casa ali: um lugar desconhecido, mas completamente agradável e acolhedor. Por sua vez, não sabia o que desejar em relação a , sentia-se bem na presença dele, apesar desconfiar de sua doçura, sentia-se quase livre com ele.
  Ela esticou as pernas, exibindo novamente a saliência que havia em sua canela direita, se espreguiçando. Ele se aproximou levemente...
   - Será que posso...? – indicou a canela de com as sobrancelhas.
   - Por que não? – deu de ombros, enquanto subia um pouco a barra da calça para vê-lo. Era exatamente o que imaginava: uma luzinha vermelha indicando que estava ligado.
   - O mundo é muito injusto. – ele disse, quase pra si mesmo.
   - Está falando isso pra menina que não usa shorts ou vai a um shopping há quase um ano. – ela replicou quase tão rápido que fez ficar um pouco tonto.
   - Você é inocente. – ele disse, ela parecia acreditar que era culpada. Mas isso era uma surpresa: não era uma assassina.
   - Convença dois Juízes e aí sim, serei inocente. – ela disse, desviando o olhar, ficava sempre frustrada quando se lembrava de todos os julgamentos.
   - Parece que você quer ser culpada... – sussurrou, cada vez mais perto de .
   - É uma maneira de acreditar que tudo isso vale a pena – tirou sua perna das mãos de , tapando-a e voltando a sua posição original. – Caso o contrário, estou privada de viver por uma mentira.
   - Você é inocente. – repetiu, dessa vez lentamente.
   suspirou, levantando-se e puxando uma cadeira até a gigantesca estante em uma das paredes do quarto. Era baixinha, e continuava baixinha em cima da cadeira, enquanto tentava pegar a caixa no topo da estante, esticou-se, pegou a caixa azul bebê e a carregou até a cama.
  Abriu-a e jogou seu conteúdo sobre a cama.
  Papéis, recortes de jornais, revistas, jornais mundialmente famosos...
  Todos a acusavam. Fotos a mostravam em uma expressão irredutivelmente triste, desesperada.
   - Eles acham que eu matei todos eles. – apontou para o foto do time de futebol, a foto estava já um pouco gasta e amassada. – Esse aqui – apontou para um loiro extremamente forte, típico capitão do time – Todd – nomeou-o – era meu namorado.
  A dor estava exposta em sua voz. Apenas de ouvi-la dizer aquilo, tinha certeza que não era a culpada.
   - Naquela noite, nós discutimos...
   - Você não precisa me contar – ele colocou a mão sobre a bochecha da garota, um carinho simples que a deixara até um pouco tonta. – posso ler se quiser – levantou um dos recortes. Exibindo-o.
   - E então, ele começou pelo Mike. – suspirou – toda essa tragédia começou por que ele achava que eu e Mike estávamos transando. Ele o matou primeiro, parou de ir para a escola e aparecer nos treinos. Não atendia minhas ligações. – a garota deixou com que a primeira lágrima caísse. Estava revivendo coisas que preferia esquecer, mas dizem que a cura: começa com a aceitação. – Depois, Sam, Thomas, Isaac, Caleb, Stephen, Richard, Will, Benjamin, Peter, Harry, Louis e Dave. Um por dia, a polícia só começou a dar importância e a suspeitar de mim quando Todd se matou e exibiu suas obras primas – agora quase soluçava.
  Era verdade que tinha grande carinho por Mike, na verdade: tinha grande carinho por todos os jogadores do time. Mas amava Todd, era apaixonada por ele. Incondicionalmente, nunca seria capaz de comer uma infidelidade que seja. Muito mais incapaz seria de matar uma pessoa da maneira Todd fez, esquartejá-las, arrancar-lhes as áreas intimas e exibi-las no ginásio.
   - Eles acham que, como eu namorada Todd, eu o deixaria com algum tipo de tratamento especial – ela suspirou, balançando a cabeça em negação – mas ele planejara tudo. – deixou com que o último suspiro saísse – Me ligara, dizendo que precisava de mim no ginásio da escola, ligou para o polícia. Quando ela chegou, eu já estava lá.
   não podia deixá-la com a cabeça baixa chorando, aos soluços enquanto ela lhe contava o que acabou por destruir toda sua vida. Em um ímpeto, levantou-se, passando seus braços, envolta da garota e a puxando para perto.
   sentia as batidas calmas do coração de enquanto ele a abraçava. Sentia-se muito melhor apenas de estar colada com alguém que parecia acreditar nela. , Ana e seu Pai também pareciam, mas evitavam ao máximo chegar ao assunto, não, ele a ouvira, fizera com que ela jogasse tudo que sentia para fora. E apesar de estar chorando desesperadamente, sentia-se mais leve.
   - Não chore. – pediu, limpando-lhe as lágrimas. – Você sabe que é inocente, não sabe? – sorriu, gentileza era seu nome do meio. acenou que sim – É isso que importa, abraçou-a novamente.
   encarou os olhos extremamente de , eram lindos e lhe passavam uma paz maravilhosa. Sua pele era macia e aconchegante, era quase como a vida que levava antes da tragédia, perfeita. mordeu o lábio inferior, arrancando-lhe coragem de cometer, talvez, a única loucura que cometera, em toda sua vida.
  Juntou seus lábios com os de . E o conforto que sentia apenas nos braços de , se alastrou por todo seu corpo, cada célula dele encontrava-se em êxtase.
  Por sua vez, não ousou relutar. Sentia algo diferente pela garota, como se algo o obrigasse a cuidar dela, não queria abandoná-la, nem muito menos magoá-la. Gostava dela, disso tinha certeza.
  Suas línguas lutavam pelo comando, enquanto acariciava a cintura da garota, puxando-a para ainda mais perto, e ela emaranhava seus dedos entre as raízes do cabelo de . Pareciam dançar em meio a uma canção silenciosa. Nada, a não ser suspiros eram ouvidos no quarto.
  Agora tinham certezas: ele estava terrivelmente apaixonado pela garota. E ela não era uma assassina.

FIM!



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