Ágape

Escrito por Annelise Stengel | Revisado por Mariana

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  O trabalho do Cupido era um tanto entediante, depois de séculos e séculos fazendo casais e vendo os humanos arruinarem cada vez mais os relacionamentos que ele se esforçava tanto para acontecerem. Era difícil ser aquele responsável pelo amor nascer em uma raça tão estúpida. Às vezes, em meses que seu coração esfriava e seu braço doía das flechas que soltava, ele pensava em desistir. Pensava em deixar a calamidade tomar conta e assistir ao circo pegar fogo. Mas ele sabia que não podia deixar aquele mundo sem amor. Se era daquele jeito mesmo com amor aflorando de suas flechas, o que seria sem? Então ele seguia irrevogável em sua função, quase sem descanso, criando casais por todo o mundo com suas flechas eros.
  Contudo, havia casos em que ele reservava flechas especiais. Porque, afinal, quase sempre esses casos eram o que lhe davam ânimo de continuar. Para eles, o Cupido usava especialmente suas flechas ágape. As flechas que não simbolizam o amor carnal, o erótico.
  Era o amor incondicional.
  Em outras culturas, era representado como o fio vermelho, ou o destino, ou qualquer banalidade dessas. Aqui, o seu início tinha-se não ao nascimento, mas ao ter a flecha dourada atravessada por seu peito, no momento em que se olha nos olhos da pessoa a que se destinará. A primeira pessoa com quem trocar olhares será aquela a quem dedicará o amor.
  É verdade que o Cupido tinha até que bastantes dessas flechas, mas ele escolhia com bastante cuidado aqueles em quem usaria. Amor incondicional podia ser uma coisa muito perigosa. Quem ama incondicionalmente não espera nada em troca, e há riscos a serem assumidos que devem ser pensados e analisados. A tarefa do Cupido, afinal, não era simplesmente sair jogando flechas por aí em quem ele quisesse. Contudo, obviamente o tipo de relacionamento que ia se tornar dependia dos humanos e de seus traços imperfeitos e suas personalidades.
  Certo, basicamente o trabalho do Cupido era sim sair jogando flechas por aí, deixando nas mãos dos humanos que sempre davam um jeito de arruinar tudo.
  Mas ele tentava ao máximo refletir sobre em quem estava jogando, pelo menos, para que a catástrofe fosse menor se possível.
  É num desses ápices de reflexão em que ele se encontrava que nossa história começa, envolta em uma nevasca sutil que acobertava as ruas e lampiões e casas com seu lençol esbranquiçado e denso, onde crianças apressadas por terem dormido demais deixavam suas pegadas a caminho da escola. O ar estava repleto de respirações condensadas e espirros saídos de narizes avermelhados, apesar dos donos dos narizes estarem enfiados em diversos casacos e gorros e cachecóis. O Cupido não costumava sentir frio, mas talvez por estar em uma época sensível, sentia-se meio afetado por ele. Esperava não estar pegando as doenças humanas, porque com elas provavelmente viriam as decadências e estupidez deles. O Cupido não tinha tempo para doenças, erros ou sentimentos humanos. Ele tinha um trabalho para cumprir.
  Aquela manhã era especial. A seta dourada que brincava em suas mãos estava selecionada havia um tempo. Observava e Kiley havia meses, desde o começo do relacionamento deles. Jogara uma flecha eros em Kiley enquanto esta estava dançando na pista de um bar com música ao vivo, seu olhar encontrando-se imediatamente com o de e acendendo uma chama dentro de si. foi o próximo a ser acertado, o milagre da reciprocidade acontecendo e durando oito meses e contando. O Cupido acompanhara o desenvolvimento deles e estava certo que aquelas flechas ágape em suas mãos seriam muito bem aproveitadas nos dois. Depois de muito preparo, havia chegado a hora deles.
  Eles estavam reunidos com alguns amigos, em um restaurante. O Cupido não tinha muitos escrúpulos nessas horas de escolher um local romântico e particular, onde os dois perceberiam seu amor incondicional um pelo outro a sós e aproveitariam o momento. Ele tinha várias outras coisas para fazer e apesar de ter o desejo de ver o casamento daqueles dois, não havia tempo para aquilo, principalmente em um dia tão frio quanto aquele.
  Mesmo estando voando por fora do estabelecimento, ele enxergava-os perfeitamente, como se não houvesse paredes, porque para um ser imortal e poderoso as coisas materiais não eram nada. Kiley estava sentada entre , que estava em uma ponta da mesa prestes a terminar sua bebida, e Aaron, que insistentemente observava os peitos expostos no decote de Jordania, sentada à sua frente, alheia ao olhar do colega enquanto conversava animadamente com Jules, que embora encarasse a amiga tinha o coração preso a Robert, ao seu lado, que por sua vez mantinha seu olhar fixo em Kiley, um amor nunca superado por conta de alguma flecha antiga do Cupido. A maioria delas desfazia-se com o tempo e o efeito morria, porque o amor eros baseava-se em desejo e paixão carnal, sendo muitas vezes fútil e efêmero. Outras duravam mais, no entanto, como o caso de Jules e seu amor por Robert, e Robert com seu amor por Kiley. Infelizmente, a partir daquela noite, Robert nunca teria uma chance. Não que o Cupido se sentisse muito culpado.
  A cadeira da ponta, ao lado de e Robert, estava vazia, indicando que o círculo de amigos não estava completo. Sem tempo a perder, o ser imortal armou-se com a flecha dourada e seu arco, sentindo flocos de neve e o vento atingirem-lhe a face, incomodando-o. Nunca se sentira tão incomodado assim antes por questões do mundo mortal. Fungou, querendo acabar com aquilo logo, e mirou em Kiley. Ela virara o rosto para e sorria enquanto ele levantava-se para buscar mais bebida para os dois. Um ótimo momento, o Cupido pensou. Tencionou a ponta de seus dedos, fechou um dos olhos para mirar através do peito de Kiley e...
  Espirrou.
  Com seus olhos fechados e o reflexo involuntário, a flecha escapou-lhe dos dedos, totalmente sem mira. Assustado, apressou-se a abrir os olhos e acompanhar a trajetória da mesma alcançar o peito de uma garota que acabara de chegar na porta do restaurante.
  Aquilo era terrível. Era uma catástrofe. E o pior de tudo, era a primeira vez que o Cupido errava daquela forma, então tudo a partir dali seria imprevisível. Uma flecha ágape não era coisa para se brincar. Sentindo o coração disparado em angústia, desceu voando torcendo para que a garota não encontrasse o olhar de ninguém até que ele a alcançasse e a colocasse em um sono profundo até que a solução fosse encontrada.
  Ao aproximar-se, reconheceu-a como sendo . Ele lembrava-se de . Diversas flechas eros desperdiçadas em relacionamentos curtos ou de uma noite, em que nada a satisfazia. Um caso antigo de , antes de ele encontrar Kiley. Quando estava próximo o suficiente de , percebeu dentro do coração dela um resquício antigo de eros, o que justificava a incapacidade de todos os outros relacionamentos. Aquela garota, assim como Robert, assim como Jules, ainda mantinha sentimentos. E os sentimentos que ela alimentava em seu peito eram direcionados a ninguém mais ninguém menos que , que se encontrava no mesmo recinto.
  Aquilo era perigoso. Muito perigoso. É claro que havia a chance de ela encontrar o olhar de qualquer outra pessoa antes de o Cupido alcança-la, assim como havia a possibilidade de não encontrar o de ninguém pois ela mantinha-se focada em seu celular. Mas ele não podia arriscar. Não quando estava no bar, próximo de . Não quando estava destinado a ser de Kiley pra sempre, e Kiley dele.
  Quando estava prestes a alcança-la e arrancar a flecha ágape de seu coração, ouviu, ao mesmo tempo em que o fez, alguém chama-la, e no impulso, assim como , levantou a cabeça, encontrando os olhos de quem dissera seu nome.
  — ...! — disse, seus olhos faiscando com uma chama dourada e súbita que ninguém além do desolado Cupido conseguiu perceber.
  Era tarde demais.

  - -
   era uma boa amiga. Era sim. É claro que tiveram aquele caso há um ou dois anos, ele não se lembrava direito quando, e desde então se sentia um pouco desconfortável perto dela, mas só um pouco. Talvez pelo fato de ela não se sentir desconfortável perto dele, mesmo depois de uma noite inteira de sexo em seu quarto. Ele estava um pouco bêbado, ela não. Ele se apegou um pouco, ela não.
era totalmente livre e talvez aquilo que incomodasse . Mas desde que conhecera Kiley e se estabelecera em um relacionamento dos sonhos, ele não se preocupava tanto assim com . Ela também não o incomodava mais, o sentimento desconfortável de seu corpo tendo desaparecido há meses. Ela era uma boa amiga, agora. Assim, quando a viu entrar quase com pressa, os olhos baixos e fixos no celular, todo o rosto iluminado pela luz azulada da tela, sem hesitação nenhuma chamou seu nome, vendo seus grandes olhos castanhos virarem em sua direção.
  — ...! — ela havia esboçado um começo de sorriso, sendo interrompida por algo no meio do ato, talvez uma epifania. Ele achou graça de seu jeito e sorrindo de lado, segurando três cervejas, estendeu uma em direção a garota. Ela o encarava, um tanto quieta, diferente do que costumava ser perto dele. Se a luz do restaurante não fosse um pouco suspeita, juraria que ela havia corado diante de sua aproximação.
  — Você está bem atrasada, senhorita. Estávamos prestes a cantar o parabéns para Jordania. — ele bateu com uma borda gelada da garrafa de vidro da cerveja na testa dela, de leve obviamente, para que ela acordasse. Parecia que havia funcionado. piscou várias vezes, sorrindo embaraçada e aceitando a cerveja que ele lhe oferecia. Caminharam juntos para a mesa, que no meio de tantas era barulhenta e repleta de risadas, parecia que carregava um peso dentro de si e , notando, ponderou se algo teria acontecido a ela no caminho. Outro de seus milhares de casos? Não que fosse da parte dele se intrometer na vida da amiga.
  — Apareceu a margarida!
  — Olê olê oláááááá! — Jordania completou a musiquinha iniciada por Jules, que avistara ao lado de primeiro. As duas levantaram-se e abraçaram a atrasada, que se desculpou estendendo o embrulho de presente que trouxera na bolsa e que causara toda a demora. Jordania, reclamando do gasto ao mesmo tempo em que se esbaldava no perfume recém-aberto, fazia um escândalo enquanto acomodava-se quietamente em seu banco, algo estranho de sua personalidade.
, que estava de volta ao lado de Kiley, sorriu breve para a amiga, que desviou os olhos e pareceu desconfortável. O rapaz não tinha certeza do que tinha acontecido, mas dessa vez definitivamente estava estranha. Como uma flor que desabrocha aos poucos, aquele sentimento de desconforto enquanto estava próximo a ela voltou a aparecer dentro de si. Sem saber o que fazer, voltou-se para Kiley, que sussurrou em seu ouvido que deviam apressar-se e cantar o parabéns. Concordando, levantou-se, propondo um brinde à Jordania. A amiga ficou um pouco chorosa, todos os outros beberam em sua homenagem e um coro desafinado de “Parabéns pra você” acompanhou suas risadas embaraçadas. Pelo canto do olho, observava observá-lo, percebendo que ela parecia estar tentando entender alguma coisa sobre ele. Ele estava preocupado, de repente, que tivesse feito algo sem que tivesse notado ou que ela precisava de uma conversa particular sobre algum assunto. Mas com ele, especificamente? Não poderia ser com alguma das meninas? É verdade que eles se deram bem depois de resolvidos os conflitos – que ele nem sabia quais eram – mas não é como se eles fossem próximos.
  Confuso, não sabia qual passo tomar. Kiley pareceu perceber como a atenção de seu namorado estava distante naquele momento e enlaçou seu braço ao dele, tentando trazê-lo de volta. Quando seus olhos se encontraram, ela sorriu e ele sorriu, viu e subitamente levantou-se. A mesa ficou silenciosa, todos os olhares nela, e ela fingiu um sorriso muito mal fingido.
  — Desculpem. Eu vou ter que ir. Desculpe, Jordy. Eu realmente tenho que ir. — e antes que os outros pudessem reclamar ou refutar aquela decisão inesperada, pegou seu casaco e acenou com a mão, saindo dali.
  Os amigos ficaram chocados por alguns segundos, até que levantou-se, seu braço soltando-se do de Kiley. Ele sorriu para ela, beijando-lhe a testa e tranquilizando-a, e Kiley conhecia-o bem para saber que ele como amigo de precisava ir atrás dela.
  — Vou ver o que ela tem, ela não parecia muito bem desde que eu encontrei com ela no bar. — ele avisou e os amigos o encorajaram, enquanto ele também pegava seu casaco e a seguia.
  Nevava um pouco mais do lado de fora e ele pôde vê-la quase virando a esquina, a cabeça baixa e os passos rápidos. Ele gritou seu nome, mas ela não parou. Então ele teve que correr até ela, segurando em seu braço e fazendo-a virar para si e encará-lo nos olhos.
  — O que foi, ? — olhou-o brevemente, mas então suas bochechas avermelharam-se e ela manteve os olhos baixos, sem encará-lo.
  — Foi alguma coisa que eu fiz? — ele disse, resolvendo ir direto ao ponto. Estava com aquela sensação esquisita o tempo todo, de que era ele, a questão era ele desde o começo e por isso ele precisava ir atrás dela e resolver aquilo que nem sabia o que era.
   ficou um tempo em silêncio, depois afastou gentilmente a mão dele de seu braço e afastou-se um passo, ainda sem olhar para ele. estranhava aquele comportamento, ela não costumava ser quieta, hesitante, tímida. Principalmente perto dele, depois do que compartilharam naquela noite em seu quarto, sempre fora uma pessoa cheia de energia e risadas escandalosas, conversando sobre tudo durante horas com qualquer amigo que aguentasse seus assuntos variados. E, além do mais, nunca tivera problema nenhum em ficar perto dele, nem mesmo quando ele apresentou Kiley ao grupo de amigos.
  — Eu não sei se eu consigo te explicar o que é. — ela finalmente disse, soltando um suspiro longo depois. Colocou parte do cabelo para trás, como se tentasse focar. — É você, mas... eu não sei o que é. — ela mordeu o lábio inferior, mantendo os olhos baixos. Um carro passou pelos dois, buzinando e virando a esquina.
  — Tem algo que eu posso fazer? É em relação a algum caso seu? — apressou-se, tentando remover a expressão agoniada do rosto bonito de sua amiga. rolou os olhos.
  — Eu não acabei de dizer que é você? É algo com você, .
  E ele engoliu em seco, porque pelo tom que ela falara, ele percebera algo muito preocupante.

  - -
  Ela não entendia porque ele tivera que vir atrás dela. Por que não Jordania, a aniversariante, para quem ela poderia desabafar tudo? Ou até mesmo Robert, que talvez entendesse como se sentia. Mas não. Tinha que ser .
   não entendia muito bem, por que ? Por que naquele momento? É verdade que ainda o achava atraente e interessante depois de tudo, mas não é como se tivesse persistido em querer algo dele. Muitos vieram e muitos viriam, ela imaginava. Naquela noite, no entanto, ao levantar seus olhos para ele, se sentira de uma forma diferente, uma forma que nunca se sentira antes. Um incômodo no estômago, uma vontade de fugir dali e meditar em paz e tentar entender o que diabos estava acontecendo. Mas ele viera atrás dela e arruinara tudo, e agora a encarava com uma cara preocupada. se perguntava se seria tão transparente, quando ele fez a derradeira pergunta.
  — , por acaso... você gosta de mim? — ele apontou estupidamente para si, fazendo-a mais uma vez rolar os olhos e querer dar-se um facepalm bem digno. Ela gostaria de rir da cara dele por ser tão convencido e achar que qualquer coisinha era ela ter se apaixonado por ele.
  Seria incrivelmente engraçado, se não fosse verdade.
  Ela hesitou antes de responder, sem saber lidar com tudo aquilo. Ela precisava ficar sozinha e pensar. Sozinha. Não com em sua frente, encarando-a com seus intensos olhos azuis e sobrancelhas franzidas, preocupado com qualquer que fosse a situação.
  — Eu tenho que ir. — foi a melhor resposta que encontrou, virando as costas e torcendo para que ele dessa vez não a seguisse. Virou a esquina e seguiu pelas ruas, meio perdida, meio sem rumo, aliviada de que ele não estava mais atrás dela.
  Quem a seguia, ao longe, era o Cupido, de olho na garota apaixonada. Ele não podia simplesmente abandoná-la depois da catástrofe que fizera, então mesmo tendo inúmeras outras coisas para fazer acabara ali, observando como tudo se desenrolaria. É verdade que estava aguentando firmemente o sentimento explosivo da ágape em seu peito, mas apenas alguns passos depois a garota se escorou em uma parede e deixou-se cair, em plena rua, chorando silenciosamente e apertando-se em um abraço solitário.
  Amar incondicionalmente alguém que não te ama de volta torna a ágape um dos piores tipos de amor. É por esse motivo que o Cupido meticulosamente analisava casais e os vínculos que eles criavam antes de sair disparando-as. Nem todos aguentariam o peso em seu coração, pois a flecha e seus resquícios eram muitos mais pesados do que as flechas eros. Apesar de ser um amor puro, sem nenhum egoísmo, em que a pessoa estaria disposta a se doar pelo outro, quando se ama alguém que já está com outra pessoa é muito difícil manter a sanidade. Era isso que enfrentava agora, sendo observada pelos passantes enquanto as lágrimas quentes escorriam pelo seu rosto gelado.
  Ele sabia que ela não aguentaria. Por isso ela sempre recebia flechas eros, e estas dissolviam-se logo. O Cupido não planejara em nenhum momento acertar com uma flecha ágape porque sabia que ela não estaria pronta para lidar com aquele sentimento. Principalmente apaixonando-se por , alguém por quem ainda mantinha resquícios de uma relação passada esquecidos no canto de suas aortas. sim estava pronto para uma relação incondicional, mas com Kiley, que estava pronta para ele também. Ele não se viraria para em um momento como esse, tendo Kiley ali, e era aquilo que se passava no coração pesado da garota na rua, pois ela tinha plena consciência da situação. O seu famoso fio vermelho do destino, aquele que se conectaria a sua alma gêmea, estava quebrado e a outra ponta solta, caída aos seus pés. Aquele amor inesperado, naquele momento nada conveniente, estava ali apenas para rasgar seu coração em pedacinhos.
  Suspirando, o Cupido olhou ao redor. Não havia nada que pudesse fazer. O tempo para remover a flecha já havia se esgotado. Ele teria que seguir em frente e continuar seu trabalho, pois havia casais através do mundo tudo que precisavam se unir e cometer seus próprios erros. e eram um erro do Cupido, mas os humanos eram uma faísca no fogo do tempo do universo, e aquilo não perduraria. Ele voltaria dali a alguns dias para ver a situação da garota, esperando que ela o surpreendesse como sempre faziam os humanos.

  O tempo era uma coisa muito relativa. Trancada em seu quarto nos primeiros dois dias, ela refletia. Manteve-se afastada, não atendeu telefonemas, mal saiu da cama, observando a cidade através de sua janela e com o refil do café na garrafa térmica ao lado do colchão. Apenas pensava. Pensava em como conhecera , naquele dia no restaurante em que ele derrubara cerveja por toda a mesa tentando servi-la. E como ele ficara para trás depois de seu turno, apenas para se desculpar, parecendo um cachorrinho abanando seu rabo. achara engraçadinho, fofo, e fora com ele para uma noite inesquecível naquele mesmo quarto, naquele mesmo colchão, depois de algumas cervejas que com certeza o deixaram um pouco alto. Sua atração fora momentânea; ele era bonito, parecia interessante, mas não era o que buscava naquele momento para sua vida. E eles se afastaram um pouco, até descobrirem amigos em comum, cerca de alguns meses depois. sempre parecera um pouco desconfortável perto dela, mesmo que ela estivesse bem com eles passarem tempo juntos como amigos. O que a irritava era o fato de ele parecer gostar dela, parecer querer mais coisas, mas nunca tomar iniciativa nenhuma, nunca dizer as palavras certas. O cãozinho que abanara o rabo agora parecia acuado, com medo do que quer que ela representasse. Ela mesma tomaria iniciativa, se ele não parecesse tão assustado.
  E ai ele apareceu com Kiley. Os dois estavam felizes e as coisas davam certo, eles se enturmaram no grupinho de amigos, pois Kiley já conhecia Robert, e estava bem.
  Ela estava bem. Mesmo com os dois juntos, aqueles oito meses que eles namoraram e estiveram juntos perto dela, nunca se incomodou e nada nunca se abrasara dentro dela.
  Era nesse momento, sempre nesse momento, que ela encolhia suas pernas nuas e enfiava as mãos na lateral da cabeça, por dentre os cabelos bagunçados, fechando os olhos e tentando se concentrar, tentando entender por que, naquele dia, a incomodara tanto ver Kiley sorrindo apaixonada por , sendo que já vira aquela mesma cena milhares de vezes. Não sabia o que havia acordado aquele amor por dentro dela, no entanto precisava pôr seus sentimentos em ordem e enfrenta-lo. O que ela odiara que ele não fizera com ela — conversar e expor o que estava acontecendo, tomar a iniciativa — não seria repetido. Acharia um jeito de lidar com aquilo de modo que não machucasse , mesmo que ela mesma acabasse ferida. O amor que surgira por seja lá qual fosse o motivo era culpa dela e apenas dela, mesmo que ela não entendesse, e não deveria afetar e sua felicidade.
  Por isso, alguns dias depois de muita reflexão e café, ligou para ele.

  - -
  Ele esperava impaciente, sua perna balançando por baixo da mesa do café em que marcara de se encontrar com . Os últimos dias tinham sido uma confusão. Ele voltara para o restaurante e avisara a todos que tivera um inconveniente e fora para casa, mas que estava tudo bem. Foi a primeira das mentiras que contara. Kiley nunca fora muito ciumenta, embora parecesse bastante incomodada que ele não conseguia mais se focar em nada desde aquele momento. “Está tudo bem”, “não se preocupe”, “Não é sobre a ”. Mais mentiras. Ele mesmo não entendia porque não conseguia desprender sua mente de e o que ela estaria sentindo. Era sobre ele e ele gostaria de resolver logo e ficar em paz, tanto com a amiga quanto com Kiley, que começava a demonstrar cada vez mais sua irritação pelas atitudes do namorado.
  “Vou encontrar Rob e Aaron, te ligo mais tarde”. Por que ele não conseguia apenas dizer a Kiley que encontraria e resolveria tudo? sentia-se um pouco enganado. Depois de todo aquele tempo, decidira demonstrar sentimentos por ele? Ele já havia superado aquele pouco que acontecera entre eles, principalmente por ela não ter tido nenhuma reação quanto àquilo. Talvez ela estivesse precisando de alguma coisa. Ou estivesse brincando com ele. Ele só queria que ela chegasse e resolvesse logo a situação.
  Como se atendesse a seus pedidos, entrou pela porta do café, sem hesitar em seguir até ele e sentar-se a sua frente. Ela estava linda, com o cabelo preso em um rabo de cavalo alto bem bagunçado, o batom forte cobrindo os lábios cerrados, os grandes olhos focados nele e envoltos por um preto gentil. engoliu em seco antes de cumprimenta-la, precisando tomar um gole do café antes para isso.
  — Desculpe a ligação tão súbita. E me desculpe pelo jeito que agi naquele dia. Você deve ter planos com Kiley então prometo que serei breve. — Ela falou tudo muito rápido e firme, mostrando quão decidida estava com tudo aquilo. mal teve tempo de associar quando ela soltou: — Eu gosto de você. E não é um gostar de amigo como pensei todo esse tempo. É um gostar diferente. Um gostar sério. Um gostar que nem eu mesma achei que seria possível de acontecer, principalmente vindo de mim. Mas depois de muita reflexão, eu percebi que não tem como fugir disso.
  Ela fez uma pausa, como se para respirar fundo ou para deixar se expressar. Ele, no entanto, estava chocado, apenas ouvindo, sem poder dizer nada. interpretou aquilo como seu passe.
  — Não se preocupe quanto a isso. Eu sei que você tem Kiley, e que Kiley conta com você. Eu não pretendo tentar te roubar dela, nem algo do tipo. Eu achei que precisaria disso para ser feliz, mas só de pensar na possibilidade de você sofrendo por qualquer motivo que fosse, me doía. E o motivo ser, em específico, eu, é algo que eu não suportaria. Eu não vim para roubar sua felicidade, ou destruí-la. Eu vim para informar que onde quer que você esteja e com quer que você esteja, eu quero que você esteja feliz e mesmo que eu não possa participar diretamente da sua felicidade, eu estarei aqui caso precise de alguma coisa.
  Dessa vez a voz de não estava tão firme, e percebeu. Percebeu como ela tremera e piscara várias vezes e imaginou o quão difícil estava sendo para ela tomar a decisão de amar sem exigir nada dele, amá-lo e vê-lo amando outra. Seu coração apertou com aquilo também, pois queria que fosse feliz, mesmo se fosse impossível para ele ser quem trouxesse a felicidade, uma vez que era Kiley quem mais desejava fazer feliz. Não é como se a desprezasse por ter aqueles sentimentos não correspondidos. Se possível, ele queria mantê-la perto de si para protegê-la, apesar de ser um extremo egoísmo. Sabia que só a machucaria.
  Então teria que deixa-la ir.
  Seu cérebro tomara essa decisão, enquanto ela o encarava, meio receosa do que ele fosse dizer, porque agora certamente era a hora de ele se expressar. Entretanto, por que as palavras não saíam de sua boca? “Eu te libertarei”, era algo nesse sentido que ele queria dizer. “Você não precisa ficar presa a mim”. “Seja feliz”. Cada vez que ele abria a boca, o que começava a se formar era “Não se vá”. Ele não a queria longe. Mas aquilo também não poderia dizer. Estava muito confuso e, depois de tanto tempo em silêncio, meio que perdera o timing para reagir.
   franziu os lábios, baixando os olhos e respirando fundo. Ele viu que ela diria mais alguma coisa, e aguardou.
  — Se estiver tudo bem, posso fazer um pedido egoísta? — ela murmurou, e ele concordou com a cabeça, deixando que ela seguisse em frente. — Eu pensei muito nisso, mas por mais que eu queria sua felicidade acima de tudo, eu não sei se consigo me doar 100% a isso. Eu não quero sair... “perdendo” — ela fez uma careta acompanhando a palavra — disso. Apesar de que o quero sugerir é meio que uma derrota.
  — O que é? — estava curioso, desejando que ela falasse logo e ele tivesse a oportunidade de pensar em algo para responder e decidir o que as batidas de seu coração significavam.
  — Posso... ficar ao seu lado? — ela levantou os olhos para ele, finalmente, encarando-o como se enxergasse sua alma e percebesse toda sua hesitação e fraqueza. — No sentido de continuar no grupo de amigos. De sair com vocês todos, inclusive Kiley, e te ver mais uma vez. Eu pensei em simplesmente abandonar tudo e passar um tempo longe para ver se esse amor acabava. — ela deu ombros, claramente insatisfeita com a ideia. — Mas quando liguei para você, percebi que queria te ver mais uma vez. E agora que estou aqui, tudo que eu desejo é “Mais uma vez. Só mais uma vez, me deixe ver ele”. Se toda vez que eu te encontrar eu ficar satisfeita por ter te visto, e meu único desejo egoísta for “mais uma vez”... eu acho que é só disso que eu preciso.
  Ela parecia incomodada ao proferir aquelas palavras, mas sentiu finalmente seu coração se acalmar. Não precisaria pedir para que ela se fosse. Nem para que ela ficasse. Ela ficaria ali, como sempre estivera nos últimos anos. O pensamento realmente acalmou seu coração.
  — É claro que sim, . Não é como se eu te quisesse longe também. — pôde ver o rosto dela se iluminar só com essas palavras. Mesmo que seu sorriso não tivesse sido largo, ela parecia inteiramente mais feliz. — Eu entendo o seu ponto e fico feliz que tenha vindo ser honesta comigo. Acho que é uma das coisas que falhei com você há um bom tempo. — ele riu constrangido. Ela não pareceu surpresa com aquilo, abrindo um sorriso ladino.
  — Obrigada, . Eu te prometo que a minha intenção não é trazer mal nenhum, muito menos arruinar a sua relação com Kiley. Eu sei que esse sentimento é pertencente a mim apenas, e que não tem nada a ver com você. — ela sorriu gentil e levantou-se. — Era só isso que eu queria falar. Obrigada. — acenou, e deixou-a ir, sabendo que, pelo menos mais uma vez, ele a veria de novo.

  De longe, o Cupido assistia, o queixo apoiado em uma das mãos, enquanto na outra rodava uma flecha ágape. Um sorriso espalhara-se pelo seu rosto, seus olhos expressando a surpresa pela cena que presenciara.
conseguira alcançar a ágape apesar de tudo e conseguira doar-se para o amor da forma que era, sem exigir nada de em troca. Só o que buscava era estar ao seu lado. O Cupido estava feliz que ela conseguira aceitar a flecha dourada em seu coração e lidar com aqueles sentimentos, caso contrário sua vida seria ainda mais infeliz.
  A grande surpresa para ele, no entanto, foi observando-a partir, sem desviar os olhos de sua figura até que sumisse de vista. Enquanto mantinha o sorriso no rosto, seu coração mostrava resquícios de uma flecha eros que o Cupido não havia notado antes, resquícios de um amor passado que havia se enfraquecido mas agora brilhava em um vermelho intenso. O brilho de Kiley ainda estava ali, ao lado do de , e restava a fazer sua escolha. Ele estava destinado a receber sua flecha ágape, que o Cupido mantinha em sua aljava.
  A questão seria para quem ele estaria olhando no momento em que esta alcançasse seu coração.



Comentários da autora


  Nota Final: Uma fanfic escrita para o Amigo Secreto da equipe, em que tirei a Mary <3
  Mary, fiz a história com muito carinho e gostei muito do plot dela, então espero que tenha gostado também! Você falou no grupo que gostava de histórias com final feliz (aquele momento de desespero que eu certamente ia fazer uma dramática) e apesar de ter restado aquela dúvida no final, você sabe quem o PP vai escolher né <3 Hahahah
  Lembrando que o desenhinho da capa fui eu que fiz, weeeee!
  Boas festas e espero mesmo que tenha gostado!
  Beijos, Anne.